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Evidência, como encontrar agulhas num palheiro.

agulha no palheiro

O que é evidência? Não evidência significa inexistência? Como podemos encontrar evidência? Quando podemos dizer que temos evidência? Estas são algumas perguntas e caminhos que tentaremos eluscidar nesse texto para que todo iniciante possa fazer sua pesquisa.

Primeiramente vamos a questão chave da sua pesquisa a pergunta que não quer se calar, isso orientará o objetivo de seu trabalho. Segundo é a pesquisa bibliográfica que deverá fazer antes de começar a definir sua metodologia de trabalho para melhor entender do assunto.

Vamos tentar resumir essa experiência com a seguinte imagem. Como encontrar agulhas num palheiro? Você pode tentar separar as palhas até encontrá-las, mas isso certamente demoraria muito e dependendo do tamanho do palheiro pode ser uma tarefa impossível. Você então pode pegar uma pequena parte do palheiro para catar, mais isso não garante que existam agulhas naquele pedaço escolhido. Sendo assim vem a terceira questão, calcular o tamanho mínimo para a amostra. Quanto devemos pegar de palhas para que com um grau bem aproximado de certeza possamos dizer que ali devem ter agulhas. O conceito depende simplesmente do sucesso que estudos anteriores tiveram ao procurar agulhas preferencialmente ou qualquer outro objeto similar no palheiro. Estamos dizendo que o palheiro é a população e as agulhas são os resultados esperados.

Mas conseguiríamos encontrar agulhas e sairíamos mostrando para todo mundo? Não. Não necessitaríamos de pesquisa para o óbvio! No máximo observaríamos agulhadas ou algo que se pareceria com agulhas, mas isso ainda não é evidência. Repetindo, olhar as palhas e catar as agulhas resolveriam a questão? Outro problema, e se não estivessem visíveis? Afinal são agulhas num palheiro. Poderíamos então recorrer a diferentes ferramentas para buscar evidência sobre a existência de agulhas. Sabendo, daí a importância de se conhecer o assunto, que as agulhas brilham sob a incidência da luz poderíamos visualizá-las, além do que elas também espetam ao tato, portanto apalparíamos a palha. Estamos falando agora de intervenções como a luz e o palpar e de formas de mensuração como a visão e o tato, intimamente ligadas ao objetivo e questão do estudo: existem agulhas sobre as palhas daquele celeiro?

Ao falarmos em celeiro incluímos uma parte da população de palhas que estão em determinado lugar com determinadas características. Poderíamos pegar qualquer palha ou entrar em qualquer celeiro? Ou devemos escolher aquele tipo em que seja mais fácil a identificação de agulhas? Obviamente que sim à segunda pergunta, poderíamos também excluir tipos de palhas e celeiros que podem esconder ou confundir a identificação de agulhas que de alguma forma interfeririam no resultado. Como por exemplo, aquelas que estão impregnados de outros metais ou espinhos que possam ser identificados pela luz ou pelo tato como agulhas e não ser, quanto maior a “pureza” da amostra melhor. São os critérios de inclusão e exclusão do estudo respectivamente. Assim como aquelas palhas que trancadas não possibilitam acesso à investigação, a importância ética do consentimento livre e esclarecido. O caminho é sempre o mais fácil e simples, não o difícil. Uma pesquisa não abraça todas as questões e não dá prêmio Nobel a ninguém! Somente uma obra é capaz de conferir esse título.

Mas como usar essas ferramentas na identificação de agulhas? Mesmo escolhendo bem a amostra com os critérios acima, não podemos simplesmente sair por aí tateando o palheiro ou iluminá-lo e achar que tudo que espeta ou brilha são agulhas. Simplesmente porque “as coisas ou são o que parecem ser, não são e nem parecem ser e mais ainda são e não parecem ser ou não são, mas parecem ser” (Epictetus, século II d.C.). Sendo assim para nos aproximarmos da verdade temos que fazer testes que contemplem essas 4 possibilidades de diagnóstico. Esta é uma das razões por que separamos nossos estudos sobre a amostra do palheiro em pelo menos 2 grupos X 2 resultados possíveis. Em um grupo interveríamos de modo a jogar a luz e palpar a palha na expectativa que as agulhas espetem ou brilhem e no outro grupo fingiríamos intervenção, na esperança que neste grupo observaríamos menos picadas ou brilhos que no primeiro. Fingir é importante, pois assim atribuiríamos o aparecimento das agulhas as técnicas de iluminação e tato, afinal pode acontecer que ao passarmos a lanterna não iluminada sobre o palheiro o magnetismo da mesma atraísse as agulhas. Encontrar pontos brilhosos ou agulhadas dessa forma não seríam atribuídos à luz ou ao palpar (à intervenção estudada) e esse teria uma baixa validade interna, a capacidade da aferição de agulhas pela luz e o palpar seria baixa. A identificação dessas agulhadas no grupo controle anularia os resultados do trabalho, sem evidência, o que não quer dizer que não existam. Estamos falando de estudos controlados onde um grupo é o controle (“intervenção fingida”), do outro, o grupo teste (intervenção desejada). Estamos falando também, no caso do magnetismo da lanterna, se conhecido no momento da pesquisa de um viés, um erro no desenho do estudo e se não conhecido de uma provável variável de confusão, pois não permitirá atribuir a luz o efeito de se encontrar agulhas. A luz ou o palpar da palha poderia ser o medicamento homeopático. As agulhadas podem ser um resultado positivo à saúde do paciente. E a lanterna de plástico (sem magnetismo) e com a luz desligada, o placebo. O placebo do palpar poderia ser um braço mecânico sem sensibilidade ao tato.

Eis que surge uma nova questão. E se o pesquisador ou interventor ou as pessoas que medem o experimento estiverem muito desejosas de observarem resultados positivos e por isso, mesmo inconscientemente, escolhessem amostras de palhas mais reluzentes para o grupo teste (com a intervenção real), ou mesmo escolhessem palhas mais macias cuja sensação de espetar seria menos repetitiva no grupo controle (aquele em que fingimos a intervenção)? E se aqueles que medem os resultados ou fazem a pesquisa soubessem qual é o grupo teste e isso os influenciassem a notar mais brilhos ou espetadelas? Estamos falando aqui da necessidade das amostras de palha serem escolhida aleatoriamente e de estudos cegos onde todas as pessoas participantes não sabem qual é o grupo aonde há intervenção real. A aleatoridade na amostra define o que chamamos de estudo epidemiológico tipo ensaio clínico. Aqueles que não tem sua amostra aleatória chamamos de estudos tipo observacionais. Os ensaios clínicos são os únicos que de fato são capazes de mostrar evidências de que alguma intervenção funciona. Já os observacionais sinalizam características/ variáveis diferentes das amostras que mais propiciam a identificação de agulhas. É óbvio também que assim como numa corrida de cavalos todos os grupos devem largar em condições idênticas, com as mesmas chances de ganhar a prova, deixando a diferenciação apenas para as características dos animais. Logo a pista de corrida, a distância a percorrer entre os concorrentes… deve ser igual, grupos homogênios.

E quanto à pergunta de quando podemos dizer que há evidência? É simples notar que ao termos 2 grupos X 2 resultados possíveis: positivo e negativo sendo nossa hipótese verdadeira chegaríamos a equação oriunda de Epictetus (de 4 diagnósticos possíveis; 2 X 2 = 4) onde no grupo teste um resultado positivo representam coisas que são e parecem ser, no grupo controle um resultado negativo significa que as coisas não são e não parecem ser, porém um resultado negativo no grupo teste as coisas são, mas não parecem ser e no grupo controle um resultado positivo as coisas não são mas parecem ser. Sendo assim se tivermos mais resultados positivos no grupo teste e mais resultados negativos no controle do que negativos no teste e positivos no controle, nos aproximaríamos mais da verdade de que existem agulhas no palheiro. E isso é evidência.

Baile de Máscaras. Platina

–         Bom dia!

–         Oi!

O cheiro do perfume tomou o ambiente com a mesma velocidade que um certo ar “blasê” arrastava minha atenção para aquele corpo escultural. Meio sem fala, ofereci minha ajuda como sempre, na tentativa de redimir-me em minha perplexidade:

–         Em que posso ajudá-la?

–         Na verdade, não estou bem certa. Vim porque minha mãe insistiu.

–         Insistiu no quê?

–         Ela acha que tenho problemas…

–         Que tipo de problemas?

–         Ela implica comigo porque chego tarde em casa. Diz que trato todo mundo como se fossem meus empregados.

Devia ter um metro e oitenta de altura, bustos fartos e um glúteo colossal. A princípio, achei que fosse silicone, mas confesso que fiquei com dúvidas ao realizar o exame físico.

–         Empregados?

–         É a família do porteiro lá de casa, aquela gentinha… Não gosto de gente que fala do que não entende. Imagina que outro dia peguei eles criticando a minha fantasia. Desci o barracão!

Ao começar a falar do carnaval, lembrei-me do meu Rio de Janeiro.

–         Eles não sabem nem o que é um “pespontê”!

Confesso que fiquei com vergonha de perguntar. E continuou:

–         Afinal sou a rainha da bateria!

–         Nossa! Exclamei, derrapando meu olhar pelo tobogã que se formava em seu peito.

–         Se o carnavalesco da escola ouve uma coisa dessas, nem sei. No outro dia, por muito menos vi ele dar um tremelique… Depois de se debater, jogou-se no sofá que trazia o carro alegórico. Foi preciso chamar o padrinho e os seguranças da escola para removê-lo.

A consulta avançava, minha atitude curiosa ajudava a incrementar nossa cumplicidade.

–         Sabe, não foi fácil ganhar esta parada, pois todo mundo quer ser a rainha de bateria. E não tive que dar pra ninguém… O “padinho” abençoou o samba no pé e venceu a melhor, é claro!

–         Você gosta do carnaval? – perguntei.

–         Se eu gosto… Carnaval é a minha vida. Ralo o ano inteiro, malho todo dia e ainda estudo!

–         Está trabalhando?

–         Mexo com moda… Quando não tô numa passarela, tô em outra. E ainda tenho que dar atenção para o namorado que ninguém é de ferro!

Ao contrário do que esperava no início da consulta, comecei a perceber que, por trás daquele brilho, de fato, havia uma estrela de verdade. Há estrelas que ainda brilham mais por dentro que por fora.

–         No fundo, gosto de ver toda aquela mistura: o pobre é milionário, bandido tá na lei, trabalhador-vagabundo, santíssimos com a sacanagem na ponta da língua… Todos cantando o mesmo samba, venerando sua deusa. Não é aquela pequenez irritante do dia-a-dia.

Os enganos são comuns ao avaliarmos o caráter das pessoas. Temos uma tendência a resumir nossas experiências na imagem que vemos pela frente, com uma tendência perversa ao rotular o belo e o feio. É mais fácil, dá menos trabalho que conhecer. Menos trabalho para quê? Pergunto eu! Pois se o fascinante da vida é descobrir. Descobrir quem se esconde atrás do orgulhoe da empáfia. Aproximar-se das pessoas para que possamos trocar energias com elas e não tenhamos de tirar energia só das comidas, do cigarro, do álcool, das drogas ou do dinheiro. Os vícios são esculpidos na base das virtudes. Como forma de sustentar a vida nos movendo numa única direção, fazemos do nosso dom a nossa cachaça diminuindo e renegando outras aptidões. Os vícios, são formas eficazes de aglutinar energias, porém de um tipo só, como a terra que só tem um tipo de mineral… Nada cresce. Esquecemos que podemos trocar simpatia por bondade, humildade por carinho, paciência por gratidão, sinceridade por amizade e boa vontade por perdão.

– A propósito,  acabei não perguntando seu nome.

– Antônio, mas meus amigos me chamam de Tuca.

 

 

Poder: da fascinação; desejo: da majestade; medicamento: Platina.

Três sets a um… Tarântula hispânica

–         Vai, vai, vai, vai…

–         Bate! Bate!

–         Acerta ela, pô!

–         Valeu! Boa!

–         Mata, mata.

–         Eh, eh, eh, eh, eh, eh, eh …

Dia de Fla X Botafogo no vôlei feminino. Time da casa: Flamengo.

Lembro-me bem do monólogo repetitivo que a líder do rubro negro, determinada pela vitória, deferia com sua equipe. Bem adestrada pelo seu técnico de cara feia e cabelo parafinado, movimentava-se o tempo todo batendo palmas a cada ponto ganho. Na época, eu treinava na escolinha, na sede do clube ao lado da quadra principal. Ao final do meu treino, enquanto esperava meus pais, sempre assistia aos jogos. Os treinos mais pareciam um dia numa delegacia de polícia. O técnico com jeito de surfista encenava gritos e pauladas. Eram sessões sado-masoquistas abertas. Nunca vi meninas tão bonitas apanharem tanto. Era bolada pra tudo que era lado. E as contusões? Aquelas garotas viviam enfaixadas.

Num outro momento, no consultório:

– Doutor, vou morrer pela boca! Quero me casar, mas tenho vergonha de entrar num vestido assim… Ah, só me lembro de estar magra quando jogava…

–         Jogava o quê? – perguntei.

–         Vôlei pelo colégio.

–         Ah, sei. Fale-me um pouco sobre você.

–         Sobre mim? Falar sobre a gente é difícil…

–         Uma qualidade, um defeito…

–         Defeito, todos, agora qualidade…

Sem deixar a bola cair, enfatizei:

–         Adoro defeitos! É sinal de que estamos diante de gente.

–         Brigo muito com meu noivo, sou ciumenta, uma hora estou bem, outra tô mal. Não consigo deixar esta agitação.

–         O que é que te acalma?

–         Quando ele me leva para dançar, transar – tem que ser todo dia pra mim – e ouvir música… Música é bom…

–         Que mais?

–         Acho que sou meio vingativa também…

E continuou contando-me que, desde mais nova, costumava armar quando estava de olho num menino e a concorrência também, sendo capaz de qualquer coisa para aprisionar o objeto de seu desejo.

O jogo estava um set a um e, na arquibancada que era ao lado do banco dos reservas, ouviam-se as estratégias do treinador:

–         Você salta por trás da Suzi, agora pula mesmo, como se fosse bater e deixa o corpo cair que a Dora vai enterrar esta pra gente. “Vamo arrebentá” com elas… Mexendo em quadra, hei, não quero ver ninguém parado… Agita, vai!

Um torcedor do time da casa, que se sentou ao meu lado, abordou-me:

–         Vamos amarrar o time deles. É o jogo da vingança, se precisar pise no pé machucado da levantadora deles.

A derrota na casa do Botafogo deixou todo mundo mordido, tanto a minha cliente que sofria de uma dor tipo agulhadas na coluna, como aquele time de voleibol, acreditavam que poderiam matar pelo desejo. Como num ritual macabro em que o momento de fé manifesta pelo cuidado, era interrompido com movimentos de autoflagelação, algumas meninas do vôlei ao perder o ponto socavam suas próprias cabeças em sinal de veemente penitência.

Perguntei para a noiva de onde vinha esse comportamento:

– Sei lá, doutor! Tive uma infância meio confusa, o meu pai era um militar bravo e batia na minha mãe. Orgulhoso, ensinou a gente a nunca baixar a cabeça pra ninguém, sabe… Ao mesmo tempo, a minha mãe não o largava. Ela dizia que gostava dele… Agora tá com problema de alcoolismo…

A vingança é de fato uma forma eficaz de superar obstáculos e de conquistar. Mas é um erro tratar uma revanche como uma vingança onde é possível até vencer, mas nunca ser um campeão. Ferir aquilo que as fazem viver sem medo de matar ou morrer, como uma faca de dois gumes, essas pessoas como uma viúva negra, que teimam em terminar só, acabam também emboladas em sua rede desferindo suas presas contra si mesma. Minha cliente dizia repetidamente ter pena de seu noivo, temendo pelo fim da relação. A necessidade de submeter suas paixões parece, em sua imaginação, dar-lhes garantias de que serão as únicas a gozarem. Vivem a fidelidade como um pacto de morte e a relação como um fim e não como um começo.

Num lance arquitetado, a líder do Mengão sentiu o joelho.

– Ai!

Gritou ela.

Foi retirada carregada. Cada membro para um lado diferente… E o Flamengo, perguntariam vocês…

– Perdeu pro meu Fogão! Três sets a um. Fo…go! Tum, tum…tá! Fo…go…

 

 

Poder: vingança; desejo: de submeter e submeter-se; medicamento: Tarântula hispânica.

As Carolas. Bryonia alba

– “Nosso irmão protetor, o vigário de nosso senhor. Nossa casa é mais forte, o abrigo de nosso senhor”…

Foi em meio à espera de um parente que chegava de viagem, em pleno saguão do aeroporto internacional, que, de repente, ouviu-se uma agitação. Adentrou um punhado de senhoras cantando eufemisticamente o refrão acima, enquanto envolvia um modesto cidadão de batina que, imóvel, sorria de boca aberta, disfarçando profusa transpiração. Não tardou para que minha curiosidade me mobilizasse em direção a uma dessas senhoras para perguntar-lhe o que estava ocorrendo:

–         Meu querido, o Papa designou este irmão para salvar nossa paróquia, que já não tem verbas nem para o café. Foi Deus, juntamente com nosso senhor Jesus, o Cristo, que atendeu às nossas preces… Nosso irmão protetor, o vigário de nosso senhor. Nossa casa é mais forte, o abrigo de nosso senhor…

Coincidentemente ou não, no mesmo dia atendi outra senhora ligada, agora, à igreja evangélica. Suas atitudes e dedicação não eram menos enfáticas:

–         Tenho minha igreja, minha fé e essa dor no joelho que não passa.

–         Quando começou a dor, senhora?

–         Ah, já faz uns três anos.

–         O que mudou em sua vida nesse mesmo período?

Silêncio.

–         O que mudou?

Repetindo a minha pergunta, ela disse expressando uma atitude de raiva:

–         O que mudei? Mudei de igreja.

Perguntei com certo receio de apanhar:

–         Por quê?

–         Porque descobri umas safadezas do meu marido e, ao conversar com o conselheiro da igreja, o mesmo deu razão pr’aquele vagabundo…

–         E aí?

Permanecendo imóvel continuava a responder minhas provocações:

–         Como e aí! Peguei minhas coisas e fui para a igreja da direita.

–         Que coisas? Ou melhor, que safadezas foram estas?

–         O meu marido ora… Desde então, tenho estas dores que não param… Não posso me mexer e só melhoram quando aperto, mas não posso ficar com a mão sobre o joelho.

–         A senhora tem mágoas?

Com um ar nostálgico, respondeu-me:

–         Mágoas? Fico me lembrando daquele tempo em que estávamos construindo a igreja. Quem fazia o caixa era eu. Juntava cada centavo, cada tijolo daqueles tem o meu suor…

–         A senhora é calorenta?

–         Sou.

–         Tem sede, boca seca?

–         Não. Sim.

–         A propósito, já perdoou o seu marido?

–         Já, mas tenho ódio só de pensar…

–         Por que não se separou?

–         Sou evangélica, casei na igreja, o ajudei a sair da bebida e até já apanhei. Mas casamento é pro resto da vida. Estava sempre lá com minhas orações, quando gritava comigo, cantava uns hinos da igreja até Jesus ouvir… Minha reza foi tão forte que ele acabou virando pastor. Hoje, eu o ajudo nas reuniões.

Vocês já entraram em uma excursão com um grupo desses? Já tiveram uma conversa sobre a vida com essas senhoras? É impossível sair deprimido. Já perceberam a dedicação que essas senhoras têm por suas igrejas? Suas casas? A fé com que se agarram ao seu “tutor, da moralidade”? E suas crenças? Imutáveis. No caso das “senhoras moças” da paróquia,  a recompensa superou o rancor, permitindo salvar a sua casa e, possivelmente, a saúde de algumas daquelas senhoras. A nostalgia e a paralisia são a tônica. Nostalgia do tempo em que tinham controle sobre suas contas em vez de paralisar. Paralisam para não quebrar. Afinal, a estagnação conceitual demonstrada na idéia de casamento, na relação paternal com a igreja, com a figura do salvador – tutor. Pela economia de movimentos de seu joelho com o casamento vagabundo – pastor. Provas de fidelidade à fé transformadas em conquistas de casas e casamentos. Como troféus, investiam em feitos heróicos, deixando-as mais próximas do Cristo. Temos aqui dois exemplos: um de sucesso, o de “casas” e outro de fracasso, o de “casamento”. Ambos submetidos ao mesmo poder que cega-nos ao objetivo, à conquista. Pois da mesma forma que a atitude das senhoras supervalorizavam o tutor, também o sufocavam, atribuindo-lhe um valor maior que o seu de direito. Assim como a evangélica que transformou o prazer de uma relação a dois num feito heróico, numa conquista, num pastor. Neste último caso, o insucesso social, a fez adoecer. Às vezes, se adubarmos demais a terra, a envenenamos, permitindo crescimento de ervas daninhas ao nosso real propósito, que deve ser sempre o amor e o respeito ao outro:

–         Minha senhora, o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória. As bromélias não são flores e as trepadeiras, também parasitas…

 

 

Poder: ira; desejo: de controle pela imobilidade; medicamento: Bryonia Alba.

Da divisão à multiplicação. Silícia terra

–         Pois não, em que posso ajudá-la?

–         !!!

–         Você veio sozinha?

–         !!!

Depois da segunda pergunta sem nenhuma resposta, pensei que ela estivesse de sacanagem comigo, afinal, já é uma adolescente e não precisava de interlocutores. Foi quando ela deu um olhar longo através da porta e, com discreto movimento para trás da cabeça, acenou para que seu pai, meio sem graça, entrasse.

–         Eu falei para ela conversar sozinha, mas não adianta não… Pensávamos até que ela fosse muda, só veio falar alguma coisa aos quase dois anos de idade. Para atender um telefonema é uma dificuldade. Ela não fala de jeito nenhum.

Foi quando me lembrei de um conto infantil que era mais ou menos assim: o velho mau explorava um menino, ameaçando-o com trezentas chibatadas se não trouxesse das areias do deserto moedas de ouro que tanto ambicionava. O fato é que, transformado pelo velho bruxo em corpo de larva e cabeça de sapo, o físico esquizóide do menino o isolava dos demais garotos de sua idade que insistiam em zombar de sua aparência. Esse “defeito” também o fazia muito especial, pois era o único a conseguir se embrenhar naquele terreno arenoso e movediço à caça daquele valioso metal. Fazia esse serviço como se tivesse dívidas com o velho e culpa pela maldição encistada em si. Prosseguindo em seu carma naquela misteriosa região, certa vez, interrompeu sua missão para salvar uma lebre presa numa armadilha que não tardou a se revelar fada e por conta disso atendeu o menino em um pedido pelo gesto benevolente. E, a partir daí, cada vez que ia atrás do ouro, encontrava algum animal em perigo, repetia o gesto e este se transformava no direito a outro pedido. Isso já estava se transformando num moto perpétuo, num sacerdócio, quando o último animal salvo por sua bondade o indagou:

–         Por que você sempre pede uma moeda de ouro como retribuição?

O menino, metade larva, metade sapo, explicou em meias palavras sobre a prisão em que vivia e o castigo que o esperava, se não levasse a moeda.

De volta à consulta, perguntei à já menina-moça:

–         Você tem amigas?

Em meias palavras, ela respondeu:

–         N…ã…o.

O pai a interrompeu e disse que no colégio a chamavam de cabeção, não só pela aparência física, mas também por ser considerada uma aluna excepcional em matemática.

É impressionante como são obstinadas essas crianças. Obstinação que revela um grande medo de errar e de receber críticas. Isolam-se, como na fábula, para não serem alfinetadas pela gozação cruel de seus pares. Tímidas e milimétricas em seus pensamentos, não toleram sequer serem consoladas. Nada que ameace o equilíbrio que constroem, como pirâmides feitas com cartas de baralho. Como na fábula, esquecem-se de suas verdadeiras necessidades, da transformação alquímica em menino, fazendo pedidos menores, mas que lhe trazem segurança imediata e conforto da não punição. Deliciam-se em cálculos métricos, como na contagem das moedas, pois dessa forma reduzem e controlam seu mundo precisamente, abstendo-se de viver. Vivem divididas, entre cabeça de sapo e corpo de larva, e, por isso, temem o que corta e o que é capaz de separar.

– Noutro dia, doutor, fomos levá-la a um pronto-socorro para costurar sua cabeça machucada numa queda… Precisa ver o escândalo que fez quando a médica se aproximou com a agulha anestésica… Esta “coisiquinha” parecia um sabonete, ninguém conseguia segurar a garota…

É necessário transformar a forma de ver a vida. Substituir a divisão pela multiplicação é enxergar a vida e não ser visto por ela.

–         Falar em público, doutor, nem em pensamento, não vai nem amarrada…

Para isso precisa saber que um homem não se faz por suas lembranças, pecados ou defeitos, mas por suas atitudes, e isso só pode ser conseguido se tirar do casulo seu corpo de larva e querer se libertar de maldições quando lhes são dadas as oportunidades de quebrar estes feitiços.

 

 

Poder: da crítica com ironia; desejo: isolamento; medicamento: Silícia.

O Ego e a Tecnologia. Veratrum album

–         “Benhê…”,

–         O que você quer?

–         Traga o meu chinelo!

Foi assim que conheci esse casal já idoso, ao adentrar na casa dos avós de um amigo que, aqui, os chamo de Ego e Tecnologia, por razões que entenderão. Conheci esse colega em um curso de Marketing. Ele trabalhava numa empresa de biotecnologia de ponta a que se referia normalmente como “a nossa empresa”, mesmo não possuindo títulos ou ações da mesma, apenas um cargo gerencial. Reclamava freqüentemente da soberba com que os cientistas de plantão se dirigiam a ele em “seu departamento”, é claro. Não tardei a perceber a semelhança com Ego, o seu avô:

–         Entre meu filho! Na minha casa, não costumamos receber ninguém na portaria…

Sentindo meu acanhamento, Tecnologia, a sua avó, logo tratou do cortejo, dirigindo-me ao seu sofá mais confortável.

–         O que você quer meu querido: um chá, uma bolacha, um café, uma água…

Não tardei a interrompê-la, aceitando a água, antes que oferecesse tudo que havia em sua despensa, quando o avô tomou a palavra:

–         Qual é seu sobrenome rapaz?

–         Vilhena.

–         Filho de banqueiro?

–         Não, de comerciante mesmo.

–         Descendência européia?

–         Portuguesa, mais precisamente, senhor…

–         A nossa é dinamarquesa… Descendemos diretamente dos vikings

Não demorou muito e Tecnologia, a avó, chegou com uma bandeja irrepreensível onde não faltava nada. Até o controle remoto da televisão repousava ao lado do guardanapo. Foi quando a conversa começou a ficar mais interessante, pois “na empresa de seu neto” desenvolvia-se clonagem de materiais.

–         Entendo que essa questão de clonagem humana seja superficial, o negócio é de “quanto” estamos falando e não de “quantos”…

Pomposamente, meu colega esbravejou, referindo-se ao valor financeiro do negócio. Não tardou e logo descobri que eram dois contra um. Quando Ego então resolveu esquentar a conversa:

–         Afinal, precisamos de mão-de-obra barata para otimizar os custos…

Estava a ponto de avançar num viking, quando adentrou novamente a senhora Tecnologia:

–         O que você quer meu querido, mais um chá, uma bolacha, um café, uma água…

Respirei fundo, buscando um movimento compensatório à minha ira, e perguntei:

–         Onde fica o banheiro, senhora?

–         Por aqui meu querido.

Conduzindo-me pelo braço, tive de dispensá-la na porta da toilette, era como chamavam o nosso banheiro. Ao retornar do nosocômio, a conversa ainda rolava como se estivessem nos corredores do Palácio do Alvorada, vazio e de alto-falante em punho. Só se ouvia o eco de suas vozes… Foi quando tive uma idéia sagaz:

–         Dom… (Ego), imagine se a idéia pega e decide fazer cópias de vossa senhoria… Teríamos Dom… (Ego) I, II, III. Depois veríamos um após o outro a reivindicar um título mais nobre que o anterior não obteve. E o que seria pior é que no final da fila observaríamos um conflito danado, pois o último sempre acharia que o anterior não esteve a sua altura. Já pensou em que lugar eles o colocariam?

Fez-se um silêncio mortal por alguns segundos, aproveitei a deixa para me despedir do netinho, quando aterrisou novamente a Tecnologia:

–         Ah… Meu querido, você não quer mais um chá, uma bolacha, um café, uma água…

No dia seguinte, no curso, não pude evitar o contato do vizinho que me perguntou:

–         Passou bem a noite? Nós fomos até o hospital Albert Einstein para tomar soro. Tivemos uma infeção intestinal daquelas…

–         Diarréia? – perguntei.

– Sim, uma gastroenterite rara – disse o professor doutor, que era o presidente titular da AIGI (Academia Internacional de Gastroenterocolites Intercontinentais…

Acreditaram que foi alguma coisa naquelas bolachas que sua vovó não parava de oferecer. Sentia-me bem, exceto por um sentimento de culpa, pela brincadeira que fiz com ambos. Obviamente que não foram os biscoitos, mas, talvez, a “bolacha” que dei ao ameaçar suas posições soberanas com cópias mais cruéis que as deles mesmos. Afinal, seria impossível garantir cópias de humildade e fidelidade ao original.

Fui para casa pensando no episódio, quando percebi que aquele casal era um símbolo da era moderna ou, talvez, um arquétipo. Vivemos hoje numa sociedade de direitos, “graças a Deus”, mas infelizmente com relações de poder muito distintas. É muito fácil observar isso. Basta que perguntemos a nós o que nos é permitido fazer: se a resposta for sim, perguntemos outra vez: já conseguimos fazer tal coisa que imaginamos, aí vem a resposta não. Ter direitos é ter permissão, ter o poder é ter a capacidade de conseguir fazer.

Vejo uma sociedade democrática nos direitos, mas nazi-fascista quanto ao poder. Temos o direito de estudar, mas não temos o poder de pagar uma universidade. Temos o direito ao lazer, mas não temos o poder de pagar pelo ir e vir, viajar, adquirir um bem ou um entretenimento… E, por isso, talvez nos colocamos de forma paranóica diante de situações em que temos o poder, mas não o direito. Como usar o dinheiro público em benefício próprio, por exemplo, quando sob o poder do voto. Queremos então exercer este poder de qualquer forma e a qualquer custo. Nos entregamos ao conforto que o poder da tecnologia nos proporciona, exercitando cada vez mais as nossas vontades, os nossos egos, com um mínimo de esforço de forma irresponsável e insaciável como crianças sem limites. Nos iludimos como aquele senhor que, se podemos, logo temos o direito. Porque podemos clonar, logo multiplicamos. Porque podemos pegar, logo roubamos. Porque podemos trocar, logo usurpamos. O fato de ser casado o senhor Ego com a senhora tão simpática e subserviente, dona Tecnologia, não lhe dava o direito de tratá-la como escrava e nem de defender a clonagem como forma de obter benefícios étnicos. Estava fazendo mal a si mesmo, isolando-se cada vez mais e com menor atividade, menos vida e mais dependente de “dona” Tecnologia. Da mesma forma, vemos “autoridades” subvertendo a ordem, numa busca insaciável daquilo que não tiveram enquanto cidadãos de direito, mas sem poder. É isso que alimenta a corrupção e esta é um mal diagnosticável numa sociedade com tantos direitos e tão pouco poder como a brasileira. O ego representa a visão dos direitos e a tecnologia a do poder de realizá-los. Ambos são pêndulos essenciais de uma balança que precisa estar em constante equilíbrio ou todos adoeceremos ainda mais, como a disenteria que tiveram os egóicos vovô e netinho, ao perceber que direito não era garantia de poder, poder ter saúde.

 

 

Poder: mais-valia de direitos; desejo: de ter poder; medicamento: Veratrum album.

Corretagem. Stramônium

–         Meu cérebro diz que estou morrendo, acabou o sopro de vida…

–         Nariz? Tampado.

–         Tem umas bolinhas brancas e amarelas que saem da garganta, doutor…

–         Dermatite de contato? Sim.

–         Cabelo fino não cresce.

–         Palpitação ao deitar à noite? Sim.

–         Unhas fracas? Sim.

–         Quando criança, bronquite, depois da menstruação, urticárias de todos os tipos.

–         Meu sangue ferve, sou extremamente calorenta, meus pés e mãos queimam…

Essas eram as queixas da dona de uma das melhores empresas de corretagem que conhecia. Vendia planos de saúde até pela internet. Andava pelos corredores de sua empresa a passos tão curtos quanto determinados, com a velocidade de uma turbina, enquanto, simultaneamente, observava todos os detalhes do atendimento geral.

–         Mantenho tudo sob controle, mas não imponho minha vontade. É essa correria o dia inteiro e todos têm de ter esse ritmo aqui. Não paramos de colocar pendências na cabeça. Violência? Não… Somos muito tranqüilas – entendamos frias – e rápidas na hora da decisão. Cortamos o emocional pela raiz. Não temos medo do que não dói, somos religiosas e não admitimos precisar de ninguém…

Enquanto falava sem parar, com aquele olhar “estalado”, como se quisesse arrancar a verdade sobre a minha pessoa, esboçava eventual sorriso sardônico sem perder um só vacilo dos funcionários que a cercavam. A fúria daquela mulher refletia nos números da empresa que, com três anos de existência, já dispunha da liderança no mercado.

Voltando a analisar as questões de saúde pregressas e pessoais, perguntei-lhe:

–         Histerectomia?

–         Total!

–         Hepatite?

–         Aos cinco anos.

Mas foi na pergunta mais simples que notei certo titubear, quebrando o ritmo alucinado com que respondia às questões:

–         Feliz?

A partir desse momento, a consulta mudou e os segredos foram revelados. Quando perguntamos sobre desejos, aversões e fantasias, falamos do nosso eu mais profundo, uma rede de crenças e valores que serve de sustento a nós mesmos e, conseqüentemente, à nossa saúde. Pois é sobre aquilo em que acreditamos que repousam nossas atitudes. Nós, doutores, nos detemos mais aos fatos que às fábulas, esquecendo-nos de que são essas últimas os fios que compõem essa rede segurança. É ela que às vezes está doente, ou melhor, inadequada ao mundo a que nos submetemos.

–         Meu ídolo é Dom Quixote… Eu falo a língua dos anjos e isso foi uma revelação pra mim, agora tenho sincronicidade com Deus.

O mundo é governado tanto pela loucura quanto pela sabedoria, sendo difícil distinguir quando estamos diante de uma ou de outra, pois o que as transformam são os olhos do observador. Acreditar em nossos pacientes é tão fundamental quanto a nossa existência naquele momento.

–         Vejo bichos saindo do chão, tenho visões quando estou nas minhas orações…

Naquele momento, a lembrança do núcleo do seu sofrimento gerou um sofrimento demasiado, não resistiu e retornou espontaneamente às tecnicalidades do cotidiano.

–         Se há uma coisa que me mata é quando recebo uma notificação do Ministério do Trabalho. Neste meu negócio, é muito comum as pessoas pedirem as contas e entrarem na justiça contra nós. Isso me deixa com ódio mortal… São pessoas que ajudei quando precisaram e até dinheiro emprestei… Somos honestíssimos com essas questões trabalhistas, pagamos tudo que é da lei. Agora, quero ver resultados…

A lei é fria, pensei eu… As relações estabelecidas nessas empresas são reflexos de um mercado altamente competitivo, no qual o que vale é quem dá mais. E se não se ganha de um jeito, ganha-se de outro. Os clientes são dois: a empresa interessada em comprar o seguro de saúde e a empresa que presta o serviço de saúde. O que transforma a empresa de corretagem num intermediário que tem de agradar a “Gregos e Troianos”. Relacionamento é o fiel da balança, e, por isso, as decisões não passam pelo habitual custo-benefício, mas castigo-recompensa ou dor-prazer. Dessa forma, alimentam-se com prêmios, vende-se. Perder um cliente para a concorrência é coisa tão corriqueira que foi necessário estabelecer regras sindicais, a fim de diminuir o “quem dá mais ou recebe menos”, tentando restabelecer a ética e a convivência de mercado. As ações trabalhistas exageradas contrapunham-se a uma exigência paranóica de lealdade, refletindo a falta de exemplo de seus líderes, pois, como mencionado anteriormente, também atendiam a dois deuses diferentes, duas empresas clientes evidenciado um conflito de interesses afinal recebiam de quem prestava o serviço e não de quem contratava. Sua obstinação desmedida por resultados não incluía estabelecer uma relação do trabalho com a vida, exagerando um pouco, mas lembrando dos campos de concentração nazistas, a eficiência perfeita dos processos enfraquecia o propósito de viver. Predadora por natureza, a empresa colecionava mágoas de seus inquisidores: ex-empregados, ex-amigos e ex-confidentes, conforme apontam os depoimentos trabalhistas. Desejosos de significado, significado este que o dinheiro já não mais podia dar, afiliavam-se a seitas, cultos, rituais ou religiões para poder se religar às questões básicas da vida: amor e cumplicidade.

 

 

Poder: do resultado; desejo: de significado; medicamento: Stramônium.

A beijoca. Psorinum

–         Vou dar uma beijoca na sua boceta!…

Foi com esta frase desconcertante que algumas colegas de classe e eu fomos apresentados a uma colônia psiquiátrica no Rio de Janeiro, no primeiro ano da faculdade de medicina. A Colônia Juliano Moreira era o lugar: um conglomerado de malucos e alguns nem tão loucos assim. Indivíduos que ali viviam sob um cenário que lembrava, por fora, os filmes americanos de faroeste e, por dentro, as masmorras de castelos medievais.  Estávamos ali deliberadamente, dando nossos primeiros passos na relação médico-paciente, tema objeto de um trabalho que deveríamos entregar para a cadeira de biologia. Estávamos acompanhados por um profissional de fino trato, que era saudado por todos que entrecortavam nosso caminho e que exibia acenos de simpatia e de respeito aos moradores locais.

–         Avisa para o Xerife que estou indo para a ala C…

–         Xerife? – perguntei.

–         Sim. Assim são chamados os responsáveis pelos afazeres aqui. Na verdade, eles não são malucos de fato, mas ganharam o direito de ser pelas mãos da Justiça, que os julgavam criminosos ou perseguidos por crime. São pessoas temidas pelos demais, organizam um pouco a sujeira local de seus albergues e quem desrespeitá-los tá numa fria…

–         E vocês, não têm medo?

–         Doutor é respeitado por aqui. Não podem nem pensar no eletrochoque…

Lembro-me bem da inquietude daquela gente, entramos numa sala em que havia um ser todo sujo, deitado num lençol mais sujo ainda, que se coçava sem parar e, segundo o guia, não podia ver água pela frente.

–         Ai, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege…

Enquanto andava e coçava, balbuciava palavras repetidas de salvação, como se carregasse todas as culpas do mundo, sem falar naquelas feridas maltratadas com fissuras “sangrantes” e cheiro pútrido.

A insolência daquela primeira frase, a da beijoca, dirigida à minha colega, também repetida muitas vezes por aquele maluco beleza que nos perseguia com idéia fixa, marcou. O estresse vivido pelo grupo só não superou a obstinação daquele que, por muito tempo afastado de nossa “civilização”, já não sabia percorrer os caminhos, os rituais, os códigos para acessar o objeto do seu desejo. De forma infrutífera, suas tentativas de assédio só levavam a mais inquietações, risos e constrangimentos. Convivi com esse mistério por muitos anos, só o desvendando com minha dedicação ao estudo da homeopatia.

Percebi que desejos, fantasias, sonhos, prazeres, aversões e manias também são matérias médicas. Aquilo que Jung chamava de inconsciente pessoal e coletivo se manifestava naquele momento de forma intensa. O “eu” daquele sujeito era absolutamente consciente dos seus desejos que, certamente, eram compartilhados por mais alguns ali presentes, haja vista a beleza da colega. Risos transformaram-se em acessos de tosse, constrangimentos em rubor, palpitação e inquietude. Via naquele momento desejo se transformando em sintoma pelo poder que a nossa cultura, os nossos códigos e a nossa hipocrisia infringiam sobre nós.

 

 

Poder: da verdade; desejo: ser quem eu sou; medicamento: Psorinum.

Mais próximos de Deus… Sulphur

  • Buá, buá, buá…
  • Não sei o que acontece com o bumbum dessas crianças, por mais que os limpe estão sempre sujos… Isso aqui mais parece um chiqueiro! E que fedor! Nossa Senhora, valei-me!

É isso mesmo o que você está pensando. Estamos numa escola-creche com criancinhas de um mês a dez anos de idade. Perguntei do que sofrem e, no meio da agitação e do desespero, veio-me uma frase de Eleonor Roosevelt: “Por não terem quase nada, as crianças precisam confiar mais na imaginação que na consciência”.

Esta é a chave para o sofrimento daqueles que, assim como muitos bebês, têm mais imaginação que consciência e que encontram na filosofia, na meditação, na excentricidade e na ruptura com o convencional um caminho para exercer a sua vocação. Com uma criatividade desmedida e pensamentos reentrantes, foi meu filho, na época com 10 anos, que acrescentou a resposta:

  • O problema com esses “caritchas” é que eles pensam em tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguem entender… É como se, ao se lembrar da sua turma do colégio, começassem pelas roupas dos colegas, do tempo se estava frio ou quente… sem falar nas brincadeiras e sacanagens simplesmente…

O que os tocam são o mundo paralelo às realizações, seus valores são diferentes daqueles que a sociedade nos impõe como normais e adequados, tais como se vestir bem, comer direito, estudar para se formar, constituir família… Um resgate precoce do movimento hippie… Mas, lembrar-se de quê? O que aqueles bebês seriam capazes de ver que nós não somos, para estar em tamanha agitação?

  • Vai ver a sopinha do Luís, acho que está quente demais para aquele calorento. Misture com água fria que ele come e pára com a “melecação”… É um enjoado mesmo…

A memória é a faculdade mental mais traiçoeira que existe e, juntamente com a imaginação, é capaz de tudo, até de adoecer. Lembrar-se de algo pode evitar que coisas ruins se repitam, mas pode também fazer com que essas mesmas coisas não desapareçam, fazendo você refém dela, transformando fantasia em realidade. Será que aquelas pequenas criaturas sofriam pela lembrança de um mundo por nós esquecido? Um mundo forjado antes da concepção, comportando-se como um computador de baixíssima memória “RAM”, com pouquíssima capacidade de administrar o volume enorme de informações que consegue armazenar na “ROM”? Ou como um caldeirão (ROM) que precisa de uma pá (RAM) para fazer andar a mistura e não estragar ou desandar, as informações ali contidas? Será que a imaginação é uma memória antepassada (ROM) e o que chamamos de memória (RAM) é apenas um gerenciador de acontecimentos mais recentes?

  • A imaginação daquele garoto deixa os outros em polvorosa…
  • Como é que consegue inventar aquelas histórias?
  • Aquele cabra já nasceu esquisito.
  • Só tem cuidado com os “bichinhos” da aula de ciências… Mas só os maiores… Os insetos não quer ver nem de longe.

Trazendo talvez experiências passadas, chamavam de imaginação o que para aquele garoto era realidade.

Quando adolescente, uma vez, um mendigo bêbado, desses que adoram o confinamento, cheirando azedo e dizendo coisas horríveis só pra que você se afaste dele, abordou-me e protestou em tom enfático:

  • Cuidado com os abutres, pois dizem ser dos outros os corpos que eles transformam em carniças…

A princípio, sem entender nada, fiquei com essa frase por anos em minha mente, encontrando significado em diversos momentos de minha vida, em que os perversos se aproximavam travestidos de santos. Hoje, ao ver a mobilização que alguns grupos nas escolas e nas empresas fazem contra os estranhos, os diferentes, os esquisitos e o quanto esses me parecem inocentes, rejeitados por estarem invariavelmente, misturados à lama e atrasados, com seus uniformes rasgados penso nos ensinamentos bíblicos e tenho a certeza de que essas pessoas, com suas mentes creativas, estão mais próximas de Deus, e aconselho, como bem escreveram Robertson Davies e James Hillman:

“Cada um descobre seu mistério à custa de sua inocência.”

E continuam: “O tempo precisa ficar de lado, caso contrário, o antes determina o depois, acorrentando você a causas passadas sobre as quais é incapaz de ter alguma atuação”.

Conectar-se à vida é não desvalorizar as atividades do cotidiano em detrimento das intelectuais, metafóricas ou metafísicas, mas, sim, compartilhar com o outro seus temores, arrumar seu quarto, fazer compras no supermercado, encarar algumas filas, ir a alguns aniversários caretas e, quem sabe, até mesmo, cozinhar…

 

 

Poder: arrumação; desejo: redescobrir; medicamento: Sulphur.

Cebolão. Thuya occidentalis

–         Se eu fizer o que preciso, morro, mas se não fizer é a morte. Já não agüento mais estudar esta matéria, tenho prova amanhã e sinto como se não soubesse nada, não consigo nem pensar no assunto… O pior é que a prova é oral e, aí, começo a balbuciar as palavras, esqueço o assunto e parece que tudo começa a girar… O João está com a monografia pela metade, já escreveu mais de 20 vezes e seu orientador manda fazer de novo… Fomos reclamar da professora Maria José com a coordenação, pois é a quinta vez que ela dá a mesma aula. A coordenação diz que ela tem mestrado, doutorado e “pós-doc”. Vai ver que é por isso que só fala da mesma coisa… Tenho medo de reclamar muito e ficar marcado… Aí, o doutor já sabe, nunca mais me aprovam… Estou meio decepcionado, pensei que faculdade fosse outra coisa…

Esta jovem chegou até mim com uma aparência que dava dó. Arrastado por sua sombra, notava sua fragilidade pelo cuidado que assentava seu pé ao chão. O pensamento científico definitivamente não atende às individualidades. Montado para isolar poucas variáveis do fenômeno em observação é concêntrico e move-se numa espiral que afunda, asfixiando o observador. Envolve o objeto em camadas de conhecimento como se fosse uma cebola. Entra em conflito por restringir demais o fenômeno que, no ambiente natural, está em constante transformação e contato com o meio exterior. Esse reducionismo afasta as pessoas da realidade, fazendo-as perder a percepção da necessidade:

– Dr. tenho visto vultos, parece que me vejo fora do meu corpo.

Essa literalidade afastava este jovens de sua mente criativa antenada na multiplicidade de causas integradas à vida, diminui sua audição e sensibilidade, priorizando a agulha à costura, o raciocínio à imaginação, fazendo-os perder a visão:

–         A Joana diz que nem consegue dormir à noite, estuda todo dia até as 3h da manhã, quando lhe vem um soninho… É um xerox atrás do outro. Com a grana que o Matheus já gastou poderia ter comprado pelo menos uns dois livros por semestre, mas o que adiantaria? É o que dizem em aula que cai na prova e toda semana tem uma… Pelo menos temos um caderno legal, o da Marcinha tem tudo, até o “pum” do mestre ela anota… Tem gente que só estuda por ali e ainda vai melhor que ela nas provas… Coitada, dá pena ver o jeito dela na hora que vê suas notas. A mãe dela me falou noutro dia que agora isso virou um ritual, não consegue ter uma conversa comum com ela sem que pegue caneta e papel…

Os rituais esticam o tempo e, por isso, permitem melhor discernimento do que é dito e melhor avaliação de quem diz, mas refletem também dificuldade de compreensão, quando estranhos ao relacionamento comum, afinal, estava com sua mãe em uma conversa ordinária. São como preces ao solicitar ajuda de invisíveis. As provas também são rituais que testam nossa vocação, desafios que quando não superados, apesar de boa preparação, devem ser entendidos como sinais fechados, necessidade de mudança de rota. Destinos invisíveis podem se manifestar como fracassos visíveis.

–         Tem gente na turma fazendo promessa de subir as escadarias da igreja de Nossa Senhora da Penha, de joelhos, se conseguir se formar. É um tal de pedir para salvar a sua alma, que nem sei… “Verrugão” é o apelido do CDF da turma. Ele quis brigar comigo, noutro dia, porque eu havia me encostado nele para ver o que estava escrevendo na carteira… Acho que não precisava daquela cola, o cara só tira dez, mas era prova de farmaco e o mau não ri de si mesmo… O doutor acredita que o titular da cadeira deixou todo mundo em prova final, porque, no dia dos mestres, fizemos uma caricatura do sujeito de asas voando em direção ao céu, com a camisa do Mengão (o time dele, é claro!), recitando parábolas farmacológicas em grego, que saíam de sua boca como raios açoitando os seus alunos indefesos. Achei até uma homenagem legal pro tio. O pior é que ficou puto, pois o Fla perdeu naquela semana e quase foi pra segundona. O cara é fanático, parece que tem dupla personalidade…

O circo montado para o professor, através daquela caricatura, simboliza uma tentativa de união entre o mágico e o real, o professor e o aluno, respectivamente, a aproximação entre a convicção imperativa do domador e o medo angustiado da fera. A realidade da fera é que os alunos nada estavam entendendo sobre conceitos absolutamente inexplicáveis que, para eles, mais pareciam coelhos saindo de uma cartola.

–         Estudar, estudar, estudar!… Ler, ler, ler!… Aula, aula, mais aula!… Já não agüento mais! Isso não é vida…

A proliferação, repetição que aparece no físico como verruga, também se revela nos comportamentos fanáticos repetidos ao extremo, como nos slogans de torcidas organizadas ou propagandas vitoriosas. Albert Einstein disse uma vez que, quando se abre a mente para uma nova idéia, ela nunca mais fica do mesmo tamanho. As universidades, com sua vocação (desejo de crescimento), focam equivocadamente o físico, privilegiando a informação, em vez do metafísico – a imaginação. Vemos muito poucos mestres brincando, falando ou estimulando o absurdo, esquecendo-se de que imaginar sobre o que não se afere é ciência ousada. Einstein fala em mente não em cérebro e essa confusão parece ser a insensatez do corpo docente. O obtuso mestre na frágil escola, por fim, revelou a dicotomia entre mente e cérebro, expressa na punição exemplar da prova final, que pouco provou a não ser a incapacidade de lidar com a singularidade que agora era meu dever resgatar:

– Querida o cérebro – órgão físico – nutre-se de informação, armazena e escoa a produção, esta sim originada na imaginação, propriedade da mente, alimenta-se de “porcarias”, fortalecendo o corpo. Procure o louco, o incerto, o doce ao invés do salgado. As baladas, o desarrumado, drogas, sexo e rock in roll nem sempre fazem mal a saúde…

 

Poder: repetição; desejo: crescimento ordenado; medicamento: Thuya occidentalis.