Mais próximos de Deus… Sulphur

  • Buá, buá, buá…
  • Não sei o que acontece com o bumbum dessas crianças, por mais que os limpe estão sempre sujos… Isso aqui mais parece um chiqueiro! E que fedor! Nossa Senhora, valei-me!

É isso mesmo o que você está pensando. Estamos numa escola-creche com criancinhas de um mês a dez anos de idade. Perguntei do que sofrem e, no meio da agitação e do desespero, veio-me uma frase de Eleonor Roosevelt: “Por não terem quase nada, as crianças precisam confiar mais na imaginação que na consciência”.

Esta é a chave para o sofrimento daqueles que, assim como muitos bebês, têm mais imaginação que consciência e que encontram na filosofia, na meditação, na excentricidade e na ruptura com o convencional um caminho para exercer a sua vocação. Com uma criatividade desmedida e pensamentos reentrantes, foi meu filho, na época com 10 anos, que acrescentou a resposta:

  • O problema com esses “caritchas” é que eles pensam em tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguem entender… É como se, ao se lembrar da sua turma do colégio, começassem pelas roupas dos colegas, do tempo se estava frio ou quente… sem falar nas brincadeiras e sacanagens simplesmente…

O que os tocam são o mundo paralelo às realizações, seus valores são diferentes daqueles que a sociedade nos impõe como normais e adequados, tais como se vestir bem, comer direito, estudar para se formar, constituir família… Um resgate precoce do movimento hippie… Mas, lembrar-se de quê? O que aqueles bebês seriam capazes de ver que nós não somos, para estar em tamanha agitação?

  • Vai ver a sopinha do Luís, acho que está quente demais para aquele calorento. Misture com água fria que ele come e pára com a “melecação”… É um enjoado mesmo…

A memória é a faculdade mental mais traiçoeira que existe e, juntamente com a imaginação, é capaz de tudo, até de adoecer. Lembrar-se de algo pode evitar que coisas ruins se repitam, mas pode também fazer com que essas mesmas coisas não desapareçam, fazendo você refém dela, transformando fantasia em realidade. Será que aquelas pequenas criaturas sofriam pela lembrança de um mundo por nós esquecido? Um mundo forjado antes da concepção, comportando-se como um computador de baixíssima memória “RAM”, com pouquíssima capacidade de administrar o volume enorme de informações que consegue armazenar na “ROM”? Ou como um caldeirão (ROM) que precisa de uma pá (RAM) para fazer andar a mistura e não estragar ou desandar, as informações ali contidas? Será que a imaginação é uma memória antepassada (ROM) e o que chamamos de memória (RAM) é apenas um gerenciador de acontecimentos mais recentes?

  • A imaginação daquele garoto deixa os outros em polvorosa…
  • Como é que consegue inventar aquelas histórias?
  • Aquele cabra já nasceu esquisito.
  • Só tem cuidado com os “bichinhos” da aula de ciências… Mas só os maiores… Os insetos não quer ver nem de longe.

Trazendo talvez experiências passadas, chamavam de imaginação o que para aquele garoto era realidade.

Quando adolescente, uma vez, um mendigo bêbado, desses que adoram o confinamento, cheirando azedo e dizendo coisas horríveis só pra que você se afaste dele, abordou-me e protestou em tom enfático:

  • Cuidado com os abutres, pois dizem ser dos outros os corpos que eles transformam em carniças…

A princípio, sem entender nada, fiquei com essa frase por anos em minha mente, encontrando significado em diversos momentos de minha vida, em que os perversos se aproximavam travestidos de santos. Hoje, ao ver a mobilização que alguns grupos nas escolas e nas empresas fazem contra os estranhos, os diferentes, os esquisitos e o quanto esses me parecem inocentes, rejeitados por estarem invariavelmente, misturados à lama e atrasados, com seus uniformes rasgados penso nos ensinamentos bíblicos e tenho a certeza de que essas pessoas, com suas mentes creativas, estão mais próximas de Deus, e aconselho, como bem escreveram Robertson Davies e James Hillman:

“Cada um descobre seu mistério à custa de sua inocência.”

E continuam: “O tempo precisa ficar de lado, caso contrário, o antes determina o depois, acorrentando você a causas passadas sobre as quais é incapaz de ter alguma atuação”.

Conectar-se à vida é não desvalorizar as atividades do cotidiano em detrimento das intelectuais, metafóricas ou metafísicas, mas, sim, compartilhar com o outro seus temores, arrumar seu quarto, fazer compras no supermercado, encarar algumas filas, ir a alguns aniversários caretas e, quem sabe, até mesmo, cozinhar…

 

 

Poder: arrumação; desejo: redescobrir; medicamento: Sulphur.