O Ego e a Tecnologia. Veratrum album

–         “Benhê…”,

–         O que você quer?

–         Traga o meu chinelo!

Foi assim que conheci esse casal já idoso, ao adentrar na casa dos avós de um amigo que, aqui, os chamo de Ego e Tecnologia, por razões que entenderão. Conheci esse colega em um curso de Marketing. Ele trabalhava numa empresa de biotecnologia de ponta a que se referia normalmente como “a nossa empresa”, mesmo não possuindo títulos ou ações da mesma, apenas um cargo gerencial. Reclamava freqüentemente da soberba com que os cientistas de plantão se dirigiam a ele em “seu departamento”, é claro. Não tardei a perceber a semelhança com Ego, o seu avô:

–         Entre meu filho! Na minha casa, não costumamos receber ninguém na portaria…

Sentindo meu acanhamento, Tecnologia, a sua avó, logo tratou do cortejo, dirigindo-me ao seu sofá mais confortável.

–         O que você quer meu querido: um chá, uma bolacha, um café, uma água…

Não tardei a interrompê-la, aceitando a água, antes que oferecesse tudo que havia em sua despensa, quando o avô tomou a palavra:

–         Qual é seu sobrenome rapaz?

–         Vilhena.

–         Filho de banqueiro?

–         Não, de comerciante mesmo.

–         Descendência européia?

–         Portuguesa, mais precisamente, senhor…

–         A nossa é dinamarquesa… Descendemos diretamente dos vikings

Não demorou muito e Tecnologia, a avó, chegou com uma bandeja irrepreensível onde não faltava nada. Até o controle remoto da televisão repousava ao lado do guardanapo. Foi quando a conversa começou a ficar mais interessante, pois “na empresa de seu neto” desenvolvia-se clonagem de materiais.

–         Entendo que essa questão de clonagem humana seja superficial, o negócio é de “quanto” estamos falando e não de “quantos”…

Pomposamente, meu colega esbravejou, referindo-se ao valor financeiro do negócio. Não tardou e logo descobri que eram dois contra um. Quando Ego então resolveu esquentar a conversa:

–         Afinal, precisamos de mão-de-obra barata para otimizar os custos…

Estava a ponto de avançar num viking, quando adentrou novamente a senhora Tecnologia:

–         O que você quer meu querido, mais um chá, uma bolacha, um café, uma água…

Respirei fundo, buscando um movimento compensatório à minha ira, e perguntei:

–         Onde fica o banheiro, senhora?

–         Por aqui meu querido.

Conduzindo-me pelo braço, tive de dispensá-la na porta da toilette, era como chamavam o nosso banheiro. Ao retornar do nosocômio, a conversa ainda rolava como se estivessem nos corredores do Palácio do Alvorada, vazio e de alto-falante em punho. Só se ouvia o eco de suas vozes… Foi quando tive uma idéia sagaz:

–         Dom… (Ego), imagine se a idéia pega e decide fazer cópias de vossa senhoria… Teríamos Dom… (Ego) I, II, III. Depois veríamos um após o outro a reivindicar um título mais nobre que o anterior não obteve. E o que seria pior é que no final da fila observaríamos um conflito danado, pois o último sempre acharia que o anterior não esteve a sua altura. Já pensou em que lugar eles o colocariam?

Fez-se um silêncio mortal por alguns segundos, aproveitei a deixa para me despedir do netinho, quando aterrisou novamente a Tecnologia:

–         Ah… Meu querido, você não quer mais um chá, uma bolacha, um café, uma água…

No dia seguinte, no curso, não pude evitar o contato do vizinho que me perguntou:

–         Passou bem a noite? Nós fomos até o hospital Albert Einstein para tomar soro. Tivemos uma infeção intestinal daquelas…

–         Diarréia? – perguntei.

– Sim, uma gastroenterite rara – disse o professor doutor, que era o presidente titular da AIGI (Academia Internacional de Gastroenterocolites Intercontinentais…

Acreditaram que foi alguma coisa naquelas bolachas que sua vovó não parava de oferecer. Sentia-me bem, exceto por um sentimento de culpa, pela brincadeira que fiz com ambos. Obviamente que não foram os biscoitos, mas, talvez, a “bolacha” que dei ao ameaçar suas posições soberanas com cópias mais cruéis que as deles mesmos. Afinal, seria impossível garantir cópias de humildade e fidelidade ao original.

Fui para casa pensando no episódio, quando percebi que aquele casal era um símbolo da era moderna ou, talvez, um arquétipo. Vivemos hoje numa sociedade de direitos, “graças a Deus”, mas infelizmente com relações de poder muito distintas. É muito fácil observar isso. Basta que perguntemos a nós o que nos é permitido fazer: se a resposta for sim, perguntemos outra vez: já conseguimos fazer tal coisa que imaginamos, aí vem a resposta não. Ter direitos é ter permissão, ter o poder é ter a capacidade de conseguir fazer.

Vejo uma sociedade democrática nos direitos, mas nazi-fascista quanto ao poder. Temos o direito de estudar, mas não temos o poder de pagar uma universidade. Temos o direito ao lazer, mas não temos o poder de pagar pelo ir e vir, viajar, adquirir um bem ou um entretenimento… E, por isso, talvez nos colocamos de forma paranóica diante de situações em que temos o poder, mas não o direito. Como usar o dinheiro público em benefício próprio, por exemplo, quando sob o poder do voto. Queremos então exercer este poder de qualquer forma e a qualquer custo. Nos entregamos ao conforto que o poder da tecnologia nos proporciona, exercitando cada vez mais as nossas vontades, os nossos egos, com um mínimo de esforço de forma irresponsável e insaciável como crianças sem limites. Nos iludimos como aquele senhor que, se podemos, logo temos o direito. Porque podemos clonar, logo multiplicamos. Porque podemos pegar, logo roubamos. Porque podemos trocar, logo usurpamos. O fato de ser casado o senhor Ego com a senhora tão simpática e subserviente, dona Tecnologia, não lhe dava o direito de tratá-la como escrava e nem de defender a clonagem como forma de obter benefícios étnicos. Estava fazendo mal a si mesmo, isolando-se cada vez mais e com menor atividade, menos vida e mais dependente de “dona” Tecnologia. Da mesma forma, vemos “autoridades” subvertendo a ordem, numa busca insaciável daquilo que não tiveram enquanto cidadãos de direito, mas sem poder. É isso que alimenta a corrupção e esta é um mal diagnosticável numa sociedade com tantos direitos e tão pouco poder como a brasileira. O ego representa a visão dos direitos e a tecnologia a do poder de realizá-los. Ambos são pêndulos essenciais de uma balança que precisa estar em constante equilíbrio ou todos adoeceremos ainda mais, como a disenteria que tiveram os egóicos vovô e netinho, ao perceber que direito não era garantia de poder, poder ter saúde.

 

 

Poder: mais-valia de direitos; desejo: de ter poder; medicamento: Veratrum album.