Da divisão à multiplicação. Silícia terra

–         Pois não, em que posso ajudá-la?

–         !!!

–         Você veio sozinha?

–         !!!

Depois da segunda pergunta sem nenhuma resposta, pensei que ela estivesse de sacanagem comigo, afinal, já é uma adolescente e não precisava de interlocutores. Foi quando ela deu um olhar longo através da porta e, com discreto movimento para trás da cabeça, acenou para que seu pai, meio sem graça, entrasse.

–         Eu falei para ela conversar sozinha, mas não adianta não… Pensávamos até que ela fosse muda, só veio falar alguma coisa aos quase dois anos de idade. Para atender um telefonema é uma dificuldade. Ela não fala de jeito nenhum.

Foi quando me lembrei de um conto infantil que era mais ou menos assim: o velho mau explorava um menino, ameaçando-o com trezentas chibatadas se não trouxesse das areias do deserto moedas de ouro que tanto ambicionava. O fato é que, transformado pelo velho bruxo em corpo de larva e cabeça de sapo, o físico esquizóide do menino o isolava dos demais garotos de sua idade que insistiam em zombar de sua aparência. Esse “defeito” também o fazia muito especial, pois era o único a conseguir se embrenhar naquele terreno arenoso e movediço à caça daquele valioso metal. Fazia esse serviço como se tivesse dívidas com o velho e culpa pela maldição encistada em si. Prosseguindo em seu carma naquela misteriosa região, certa vez, interrompeu sua missão para salvar uma lebre presa numa armadilha que não tardou a se revelar fada e por conta disso atendeu o menino em um pedido pelo gesto benevolente. E, a partir daí, cada vez que ia atrás do ouro, encontrava algum animal em perigo, repetia o gesto e este se transformava no direito a outro pedido. Isso já estava se transformando num moto perpétuo, num sacerdócio, quando o último animal salvo por sua bondade o indagou:

–         Por que você sempre pede uma moeda de ouro como retribuição?

O menino, metade larva, metade sapo, explicou em meias palavras sobre a prisão em que vivia e o castigo que o esperava, se não levasse a moeda.

De volta à consulta, perguntei à já menina-moça:

–         Você tem amigas?

Em meias palavras, ela respondeu:

–         N…ã…o.

O pai a interrompeu e disse que no colégio a chamavam de cabeção, não só pela aparência física, mas também por ser considerada uma aluna excepcional em matemática.

É impressionante como são obstinadas essas crianças. Obstinação que revela um grande medo de errar e de receber críticas. Isolam-se, como na fábula, para não serem alfinetadas pela gozação cruel de seus pares. Tímidas e milimétricas em seus pensamentos, não toleram sequer serem consoladas. Nada que ameace o equilíbrio que constroem, como pirâmides feitas com cartas de baralho. Como na fábula, esquecem-se de suas verdadeiras necessidades, da transformação alquímica em menino, fazendo pedidos menores, mas que lhe trazem segurança imediata e conforto da não punição. Deliciam-se em cálculos métricos, como na contagem das moedas, pois dessa forma reduzem e controlam seu mundo precisamente, abstendo-se de viver. Vivem divididas, entre cabeça de sapo e corpo de larva, e, por isso, temem o que corta e o que é capaz de separar.

– Noutro dia, doutor, fomos levá-la a um pronto-socorro para costurar sua cabeça machucada numa queda… Precisa ver o escândalo que fez quando a médica se aproximou com a agulha anestésica… Esta “coisiquinha” parecia um sabonete, ninguém conseguia segurar a garota…

É necessário transformar a forma de ver a vida. Substituir a divisão pela multiplicação é enxergar a vida e não ser visto por ela.

–         Falar em público, doutor, nem em pensamento, não vai nem amarrada…

Para isso precisa saber que um homem não se faz por suas lembranças, pecados ou defeitos, mas por suas atitudes, e isso só pode ser conseguido se tirar do casulo seu corpo de larva e querer se libertar de maldições quando lhes são dadas as oportunidades de quebrar estes feitiços.

 

 

Poder: da crítica com ironia; desejo: isolamento; medicamento: Silícia.