Corretagem. Stramônium

–         Meu cérebro diz que estou morrendo, acabou o sopro de vida…

–         Nariz? Tampado.

–         Tem umas bolinhas brancas e amarelas que saem da garganta, doutor…

–         Dermatite de contato? Sim.

–         Cabelo fino não cresce.

–         Palpitação ao deitar à noite? Sim.

–         Unhas fracas? Sim.

–         Quando criança, bronquite, depois da menstruação, urticárias de todos os tipos.

–         Meu sangue ferve, sou extremamente calorenta, meus pés e mãos queimam…

Essas eram as queixas da dona de uma das melhores empresas de corretagem que conhecia. Vendia planos de saúde até pela internet. Andava pelos corredores de sua empresa a passos tão curtos quanto determinados, com a velocidade de uma turbina, enquanto, simultaneamente, observava todos os detalhes do atendimento geral.

–         Mantenho tudo sob controle, mas não imponho minha vontade. É essa correria o dia inteiro e todos têm de ter esse ritmo aqui. Não paramos de colocar pendências na cabeça. Violência? Não… Somos muito tranqüilas – entendamos frias – e rápidas na hora da decisão. Cortamos o emocional pela raiz. Não temos medo do que não dói, somos religiosas e não admitimos precisar de ninguém…

Enquanto falava sem parar, com aquele olhar “estalado”, como se quisesse arrancar a verdade sobre a minha pessoa, esboçava eventual sorriso sardônico sem perder um só vacilo dos funcionários que a cercavam. A fúria daquela mulher refletia nos números da empresa que, com três anos de existência, já dispunha da liderança no mercado.

Voltando a analisar as questões de saúde pregressas e pessoais, perguntei-lhe:

–         Histerectomia?

–         Total!

–         Hepatite?

–         Aos cinco anos.

Mas foi na pergunta mais simples que notei certo titubear, quebrando o ritmo alucinado com que respondia às questões:

–         Feliz?

A partir desse momento, a consulta mudou e os segredos foram revelados. Quando perguntamos sobre desejos, aversões e fantasias, falamos do nosso eu mais profundo, uma rede de crenças e valores que serve de sustento a nós mesmos e, conseqüentemente, à nossa saúde. Pois é sobre aquilo em que acreditamos que repousam nossas atitudes. Nós, doutores, nos detemos mais aos fatos que às fábulas, esquecendo-nos de que são essas últimas os fios que compõem essa rede segurança. É ela que às vezes está doente, ou melhor, inadequada ao mundo a que nos submetemos.

–         Meu ídolo é Dom Quixote… Eu falo a língua dos anjos e isso foi uma revelação pra mim, agora tenho sincronicidade com Deus.

O mundo é governado tanto pela loucura quanto pela sabedoria, sendo difícil distinguir quando estamos diante de uma ou de outra, pois o que as transformam são os olhos do observador. Acreditar em nossos pacientes é tão fundamental quanto a nossa existência naquele momento.

–         Vejo bichos saindo do chão, tenho visões quando estou nas minhas orações…

Naquele momento, a lembrança do núcleo do seu sofrimento gerou um sofrimento demasiado, não resistiu e retornou espontaneamente às tecnicalidades do cotidiano.

–         Se há uma coisa que me mata é quando recebo uma notificação do Ministério do Trabalho. Neste meu negócio, é muito comum as pessoas pedirem as contas e entrarem na justiça contra nós. Isso me deixa com ódio mortal… São pessoas que ajudei quando precisaram e até dinheiro emprestei… Somos honestíssimos com essas questões trabalhistas, pagamos tudo que é da lei. Agora, quero ver resultados…

A lei é fria, pensei eu… As relações estabelecidas nessas empresas são reflexos de um mercado altamente competitivo, no qual o que vale é quem dá mais. E se não se ganha de um jeito, ganha-se de outro. Os clientes são dois: a empresa interessada em comprar o seguro de saúde e a empresa que presta o serviço de saúde. O que transforma a empresa de corretagem num intermediário que tem de agradar a “Gregos e Troianos”. Relacionamento é o fiel da balança, e, por isso, as decisões não passam pelo habitual custo-benefício, mas castigo-recompensa ou dor-prazer. Dessa forma, alimentam-se com prêmios, vende-se. Perder um cliente para a concorrência é coisa tão corriqueira que foi necessário estabelecer regras sindicais, a fim de diminuir o “quem dá mais ou recebe menos”, tentando restabelecer a ética e a convivência de mercado. As ações trabalhistas exageradas contrapunham-se a uma exigência paranóica de lealdade, refletindo a falta de exemplo de seus líderes, pois, como mencionado anteriormente, também atendiam a dois deuses diferentes, duas empresas clientes evidenciado um conflito de interesses afinal recebiam de quem prestava o serviço e não de quem contratava. Sua obstinação desmedida por resultados não incluía estabelecer uma relação do trabalho com a vida, exagerando um pouco, mas lembrando dos campos de concentração nazistas, a eficiência perfeita dos processos enfraquecia o propósito de viver. Predadora por natureza, a empresa colecionava mágoas de seus inquisidores: ex-empregados, ex-amigos e ex-confidentes, conforme apontam os depoimentos trabalhistas. Desejosos de significado, significado este que o dinheiro já não mais podia dar, afiliavam-se a seitas, cultos, rituais ou religiões para poder se religar às questões básicas da vida: amor e cumplicidade.

 

 

Poder: do resultado; desejo: de significado; medicamento: Stramônium.