Excepcional ou patológico? Mercurius solubilis

  • “Atentado a bomba destrói uma quadra em Israel, matando várias pessoas”.
  • “Padres pedófilos são expulsos…”
  • “Guerra mata mais inocentes que soldados…”
  • “Narcotráfico impede prefeitura de construir em favelas…”

Foram manchetes de jornais como estas que me fizeram pensar naquilo que chama a atenção da gente: o excepcional, aquilo que excede, transborda e, por isso, é notado. Porém, hoje em dia, nem tudo que é estranho à nossa natureza é levado ao médico, como percebi em outras manchetes:

  • “Empresa do ano, pela segunda vez, responde na justiça por crime…”
  • “Estrela da música pop é envolvida com assédio a menores…”
  • “Empresário bem-sucedido é assassinado, junto com a esposa, pela filha e seu namorado…”

Retrocedi no tempo e imaginei essas pessoas antes da revelação dessas manchetes. Figuras de sucesso, excepcionais. Ao mesmo tempo, veio-me uma frase dos tempos da adolescência quando a saúde física me prometia tudo que era imaginado: cuidado com o que deseja, que você pode conseguir… Conseguir, vencer, conquistar e dominar são poderes comuns à nossa volta, quando usados em si mesmo, como vemos nos grandes atletas, são sinônimos de superação, mas, quando usados sobre o outro, transformam-se em pecado mortal, imperdoável.

Voltei-me aos meus atendimentos rotineiros. O próximo a entrar em meu consultório trajava um distinto uniforme que não conseguia esconder seu cheiro ou mesmo limitar seus movimentos desengonçados:

– Ô, “doc”…

Seu desespero aumentava enquanto procurava saídas para ele:

  • Não sei mais o que faço com esta úlcera na minha perna… Não posso mais vestir minhas botas…

Atormentado pelos meus questionamentos, invoquei-os:

– Como?

  • Não sei, começou com uma feridinha e deu no que deu…

Inquieto com o tumor ulcerado que tinha em sua perna, foi logo se protegendo em sua patente:

  • Sou capitão-tenente da OM (organização militar) de abastecimento…

Referiu-se ainda a um sonho repetido que tinha e associou o mesmo a uma noite tranqüila:

  • Ô, “doc”, só consigo descansar bem depois que mato alguém no sonho e pode ser qualquer um, basta duvidar de mim…

Somando-se a essa história, o dentista que trabalhava comigo no ambulatório havia me contado que esse paciente não cuspia no escarrador após os procedimentos. Esbravejando que isso era frescura, engolia um sem número de amálgamas de mercúrio, resíduo de algumas restaurações, como se fosse o seu rancho. Fiz o diagnóstico toxicológico. Ao sugerir o tratamento, percebi de imediato a mudança de tom em seu rosto. Quando falei em homeopatia para tratar aquele repulsivo “brocotoma” em sua perna, fez cara de enganado, tonteando imediatamente a cadeira que o apoiava… Não preciso dizer que nunca mais o vi e quase fui “pro baileu”. Alguns boatos chegaram aos meus ouvidos pelo cabo que me assistia e parece que o sujeito arrancou aquilo com uma faca… Nossa senhora!

As manchetes não saíam da minha cabeça, pensava sobre as coisas que ouvia naquele ambulatório, sobre os heróis excepcionais que, se afastando da normalidade, trouxeram anestesia, na forma de insensibilidade e destruição sobre o caráter institucional desse movimento, e, então, pude entender mais sobre nós, sobre o país, sobre os governos ditadores a quem nos submetemos. Enfim, sobre toda essa herança. Em meio ao perdão, acenou dentro de mim a resposta: o excepcional é patológico. É como o menino gênio que só sabe matemática e atribuímos a ele honras ao mérito em geografia, história e, ainda, esperamos que nos ensine inglês. Dessa forma, se comportam as instituições gigantes que só são capazes de ver aquilo que é do seu tamanho, cometendo equívocos grosseiros.

As forças armadas, assim como todos os tipos de máfias e a própria igreja, são modelos excepcionais aqui estereotipados, mas que estão presentes em diversas empresas ou grupos menores, que compartilham dessas características. São manifestações extremas de controle sobre si mesmas, quer pelas regras, pela devoção ou pela consciência, respectivamente. Como traço comum, a fidelidade é mais importante do que a coerência. Frutos do monoteísmo, na crença em um único poder, sofrem ao acreditar que este poder vem de cima: do general, do chefe ou do Papa. Trabalham com a fascinação, pois isso, é excepcional. Zelam pela unidade e usam como instrumento a obediência, engrenagem para movimentar seu corpo conforme seus pensamentos. A hierarquia e os rituais são a tônica, recorrem aos invisíveis de sua cultura e à necessidade para sustentar seu patrimônio e sua atuação. Os gigantes são conhecidos pelo raciocínio lento e concreto, pela miopia, e sua burrice adulta ameaça a imaginação da criança. Isso caracteriza estruturas rígidas, excepcionais e milenares. Porém, é por não perceberem as coisas pequenas, como os resíduos de mercúrio que adoeceram o capitão, que se curvam à destruição. Afinal, foi um pé de feijão que salvou João e uma pedrinha, a de Davi, que matou Golias.

 

 

Poder: disciplina; desejo: dominar; medicamento: Mercurius solubilis.