Controladoria, Ignácia amara

  • Porra, eu já falei que não quero que mexam em minhas coisas! Cadê aquele desgraçado que eu mandei pagar aquela conta e ainda não voltou? Acho que vocês estão me confundindo com qualquer um! Comigo não!

Ao contrário do que podem estar pensando, não é desse chefe do departamento de pessoal, de um escritório de contabilidade, que, aos berros, dirigia-se aos seus funcionários, que vamos falar. Mas daqueles que, calados, ouviam os gritos desse que também era um dos sócios da empresa. Estamos falando dessas pessoas que, dos laços afetivos, fazem um cativeiro, colocando a necessidade acima da razão, transformando seus erros em tragédias.

  • Ajuda aqui, ela está pesada!
  • Doutor, ela começou a chorar e caiu no chão, desmaiada.

Sua face estava congelada, assim como sua disposição em reagir. Era uma das responsáveis pelo fechamento do caixa no dia de pagamentos dos funcionários. E por esses colegas foi trazida até o pronto-socorro.

  • Todos nós dependemos daquele trabalho, doutor.

Conforme seus colegas que a acompanharam até o local, todos estavam sob forte pressão, pois, se cometesse algum erro de cálculo, eram obrigados a repor o dinheiro de seu próprio bolso e havia ocorrido um grande desfalque nas contas.

  • Apesar de grosseiro, nosso chefe é uma pessoa justa.

A culpa assumida implícitamente naquela frase, sem que ninguém houvesse perguntado nada sobre a causalidade da turbulência, justificava o medicamento que seria empregado.

  • Tem gente com uma úlcera no estômago, outros com infecções de garganta de repetição, tem horas que a repartição fica vazia com tanta gente no médico.

Depois dessas observações, ficou claro que se tratava de uma doença epidêmica que contaminara a todos, assim como a paciente que chegou carregada. Aos dias que se seguiram, um após o outro, murmuravam-se queixas que, somadas, confirmavam o diagnóstico que paralisava a empresa. Ao mesmo tempo, ouviam-se na ante-sala alternâncias de humores de pessoas que, quase sem conseguir respirar de tanto rir, diziam:

  • Não posso freqüentar hospitais e enterros que fico assim… Quá, quá, quá…

Só tinha visto tais reações num grupo de teatro que freqüentava. Toda vez em que chegava a hora de fazer a encenação só se ouviam risos histéricos e incontroláveis. Foi então que decidi usar essa ferramenta para tratar do restante que se encontrava no local. Fui rindo também e pedi:

  • Mais alto, agora só pode falar sorrindo…

Sorrir também é contagioso, assim como chorar, e eis que, pela lei do semelhante, curando o semelhante, os nervos foram se acalmando e a paz se restabeleceu.

Há circunstâncias em que o medo toma conta da vida e, quando essa contradição se apodera de nosso espírito, temos de perceber que alguma coisa está errada. O medo de perder o emprego que aquela gente tinha era proporcional ao sofrimento a que se submetiam. O poder da humilhação transforma desejos gigantescos de expressão em espasmos sentidos fisicamente:

  • Doutor, tenho um bolo na garganta que não consigo tirar!
  • Não consigo ter relações sexuais com meu namorado, que tranco tudo!

Estamos lidando com uma situação em que tanto o desmaio como as contrações, ao contrário de histeria que estamos acostumados a diagnosticar, é um processo transformador do jugo da necessidade na escuridão dos pensamentos, convertendo todas as emoções para o íntimo de seus sonhos:

– Doutor, sonho colorido toda a noite, desde pesadelos até que sou um pássaro…

Vitimados pelas mesmas circunstâncias, outros, sem remorso, sorriem compulsivamente. Mas todos, sem exceção, anseiam pela liberdade.

 

 

Poder: humilhação; desejo: liberdade de expressão; medicamento: Ignácia amara.