As Carolas. Bryonia alba

– “Nosso irmão protetor, o vigário de nosso senhor. Nossa casa é mais forte, o abrigo de nosso senhor”…

Foi em meio à espera de um parente que chegava de viagem, em pleno saguão do aeroporto internacional, que, de repente, ouviu-se uma agitação. Adentrou um punhado de senhoras cantando eufemisticamente o refrão acima, enquanto envolvia um modesto cidadão de batina que, imóvel, sorria de boca aberta, disfarçando profusa transpiração. Não tardou para que minha curiosidade me mobilizasse em direção a uma dessas senhoras para perguntar-lhe o que estava ocorrendo:

–         Meu querido, o Papa designou este irmão para salvar nossa paróquia, que já não tem verbas nem para o café. Foi Deus, juntamente com nosso senhor Jesus, o Cristo, que atendeu às nossas preces… Nosso irmão protetor, o vigário de nosso senhor. Nossa casa é mais forte, o abrigo de nosso senhor…

Coincidentemente ou não, no mesmo dia atendi outra senhora ligada, agora, à igreja evangélica. Suas atitudes e dedicação não eram menos enfáticas:

–         Tenho minha igreja, minha fé e essa dor no joelho que não passa.

–         Quando começou a dor, senhora?

–         Ah, já faz uns três anos.

–         O que mudou em sua vida nesse mesmo período?

Silêncio.

–         O que mudou?

Repetindo a minha pergunta, ela disse expressando uma atitude de raiva:

–         O que mudei? Mudei de igreja.

Perguntei com certo receio de apanhar:

–         Por quê?

–         Porque descobri umas safadezas do meu marido e, ao conversar com o conselheiro da igreja, o mesmo deu razão pr’aquele vagabundo…

–         E aí?

Permanecendo imóvel continuava a responder minhas provocações:

–         Como e aí! Peguei minhas coisas e fui para a igreja da direita.

–         Que coisas? Ou melhor, que safadezas foram estas?

–         O meu marido ora… Desde então, tenho estas dores que não param… Não posso me mexer e só melhoram quando aperto, mas não posso ficar com a mão sobre o joelho.

–         A senhora tem mágoas?

Com um ar nostálgico, respondeu-me:

–         Mágoas? Fico me lembrando daquele tempo em que estávamos construindo a igreja. Quem fazia o caixa era eu. Juntava cada centavo, cada tijolo daqueles tem o meu suor…

–         A senhora é calorenta?

–         Sou.

–         Tem sede, boca seca?

–         Não. Sim.

–         A propósito, já perdoou o seu marido?

–         Já, mas tenho ódio só de pensar…

–         Por que não se separou?

–         Sou evangélica, casei na igreja, o ajudei a sair da bebida e até já apanhei. Mas casamento é pro resto da vida. Estava sempre lá com minhas orações, quando gritava comigo, cantava uns hinos da igreja até Jesus ouvir… Minha reza foi tão forte que ele acabou virando pastor. Hoje, eu o ajudo nas reuniões.

Vocês já entraram em uma excursão com um grupo desses? Já tiveram uma conversa sobre a vida com essas senhoras? É impossível sair deprimido. Já perceberam a dedicação que essas senhoras têm por suas igrejas? Suas casas? A fé com que se agarram ao seu “tutor, da moralidade”? E suas crenças? Imutáveis. No caso das “senhoras moças” da paróquia,  a recompensa superou o rancor, permitindo salvar a sua casa e, possivelmente, a saúde de algumas daquelas senhoras. A nostalgia e a paralisia são a tônica. Nostalgia do tempo em que tinham controle sobre suas contas em vez de paralisar. Paralisam para não quebrar. Afinal, a estagnação conceitual demonstrada na idéia de casamento, na relação paternal com a igreja, com a figura do salvador – tutor. Pela economia de movimentos de seu joelho com o casamento vagabundo – pastor. Provas de fidelidade à fé transformadas em conquistas de casas e casamentos. Como troféus, investiam em feitos heróicos, deixando-as mais próximas do Cristo. Temos aqui dois exemplos: um de sucesso, o de “casas” e outro de fracasso, o de “casamento”. Ambos submetidos ao mesmo poder que cega-nos ao objetivo, à conquista. Pois da mesma forma que a atitude das senhoras supervalorizavam o tutor, também o sufocavam, atribuindo-lhe um valor maior que o seu de direito. Assim como a evangélica que transformou o prazer de uma relação a dois num feito heróico, numa conquista, num pastor. Neste último caso, o insucesso social, a fez adoecer. Às vezes, se adubarmos demais a terra, a envenenamos, permitindo crescimento de ervas daninhas ao nosso real propósito, que deve ser sempre o amor e o respeito ao outro:

–         Minha senhora, o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória. As bromélias não são flores e as trepadeiras, também parasitas…

 

 

Poder: ira; desejo: de controle pela imobilidade; medicamento: Bryonia Alba.