A beijoca. Psorinum

–         Vou dar uma beijoca na sua boceta!…

Foi com esta frase desconcertante que algumas colegas de classe e eu fomos apresentados a uma colônia psiquiátrica no Rio de Janeiro, no primeiro ano da faculdade de medicina. A Colônia Juliano Moreira era o lugar: um conglomerado de malucos e alguns nem tão loucos assim. Indivíduos que ali viviam sob um cenário que lembrava, por fora, os filmes americanos de faroeste e, por dentro, as masmorras de castelos medievais.  Estávamos ali deliberadamente, dando nossos primeiros passos na relação médico-paciente, tema objeto de um trabalho que deveríamos entregar para a cadeira de biologia. Estávamos acompanhados por um profissional de fino trato, que era saudado por todos que entrecortavam nosso caminho e que exibia acenos de simpatia e de respeito aos moradores locais.

–         Avisa para o Xerife que estou indo para a ala C…

–         Xerife? – perguntei.

–         Sim. Assim são chamados os responsáveis pelos afazeres aqui. Na verdade, eles não são malucos de fato, mas ganharam o direito de ser pelas mãos da Justiça, que os julgavam criminosos ou perseguidos por crime. São pessoas temidas pelos demais, organizam um pouco a sujeira local de seus albergues e quem desrespeitá-los tá numa fria…

–         E vocês, não têm medo?

–         Doutor é respeitado por aqui. Não podem nem pensar no eletrochoque…

Lembro-me bem da inquietude daquela gente, entramos numa sala em que havia um ser todo sujo, deitado num lençol mais sujo ainda, que se coçava sem parar e, segundo o guia, não podia ver água pela frente.

–         Ai, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege…

Enquanto andava e coçava, balbuciava palavras repetidas de salvação, como se carregasse todas as culpas do mundo, sem falar naquelas feridas maltratadas com fissuras “sangrantes” e cheiro pútrido.

A insolência daquela primeira frase, a da beijoca, dirigida à minha colega, também repetida muitas vezes por aquele maluco beleza que nos perseguia com idéia fixa, marcou. O estresse vivido pelo grupo só não superou a obstinação daquele que, por muito tempo afastado de nossa “civilização”, já não sabia percorrer os caminhos, os rituais, os códigos para acessar o objeto do seu desejo. De forma infrutífera, suas tentativas de assédio só levavam a mais inquietações, risos e constrangimentos. Convivi com esse mistério por muitos anos, só o desvendando com minha dedicação ao estudo da homeopatia.

Percebi que desejos, fantasias, sonhos, prazeres, aversões e manias também são matérias médicas. Aquilo que Jung chamava de inconsciente pessoal e coletivo se manifestava naquele momento de forma intensa. O “eu” daquele sujeito era absolutamente consciente dos seus desejos que, certamente, eram compartilhados por mais alguns ali presentes, haja vista a beleza da colega. Risos transformaram-se em acessos de tosse, constrangimentos em rubor, palpitação e inquietude. Via naquele momento desejo se transformando em sintoma pelo poder que a nossa cultura, os nossos códigos e a nossa hipocrisia infringiam sobre nós.

 

 

Poder: da verdade; desejo: ser quem eu sou; medicamento: Psorinum.