Pesado. Sépia succus

  • “Defunto quando tem quem carrega faz peso…”
  • “Cuida deste que já tá na tábua da beirada…”

Estamos agora dentro de outra instituição milenar, quase um arquétipo das organizações e, por isso mesmo, difícil de explicar. Tudo pesa nessas instituições. Processos complicadíssimos, decisões que contrariam a sua missão, falta de comando ou de controle, mau humor do corpo de funcionários. Cheguei a ouvir certa vez:

  • “O hospital seria o melhor lugar do mundo se não houvesse pacientes…”

Refletindo o desejo de estar só, esta frase se contrapõe ao objetivo pelo qual foi criada, o de estar com o outro. Com a finalidade de diminuir o sofrimento alheio, utiliza o reducionismo como estratégia equivocada de atuação:

  • “… Não, eu estou falando do enfartado…”
  • “… Pensei que fosse da apendicite…”

O modelo único do diagnóstico reduz o sofrimento dos familiares atônitos e a percepção dos médicos pela complexidade dos doentes. A simplificação ilusória das causas autoriza o controle do comportamento pelas drogas.

  • Doutor, o paciente está vomitando!
  • Faz um antiemético nele. O que está esperando?
  • Aquele abdômen não está evoluindo bem, vou levar o paciente para a UTI.
  • Não sei o que houve, pois a cirurgia foi perfeita…

Estamos diante de um sistema não linear, no qual pequenos estímulos levam a enormes diferenças de respostas. Durante sua sobrevivência ao longo da história, essas empresas costumam carregar uma estabilidade que as melhores gestões empresariais, caracteristicamente lineares, não demonstram. Estas últimas são mais previsíveis e mais lucrativas, mas a menor falha pode não dar respostas e determinar a sua extinção, o que é impensável quando lidamos com vidas humanas. É como posicionar dominós em seqüência linear. Sabemos que, ao derrubar o primeiro, teremos sempre a mesma resposta ao final, a não ser que algum falhe por mau posicionamento ou por qualquer outra variação no ambiente ou no estímulo. Não há UTIs, by pass, que possam dar continuidade ao processo. Sairia muito caro e modificaria a lógica dos negócios: o lucro. Sistemas não lineares, os hospitais operam com inúmeras linhas de frente (front offices), caracterizados pela diversidade do atendimento com diferentes especialidades, visando à maior segurança, custam mais, pois o que está implícito é o desejo de sempre vencer. Vencer a morte ou a dor é um conceito que submete os profissionais que ali atuam.

  • Vocês viram o Carlos, agora ele está na diretoria. Internação era sinônimo de qualidade pra ele…

A perversa inadequação do tratamento é conseqüência da perversidade da cultura, que vitima também os profissionais de saúde. Acreditando em internações sem propósitos clínicos e na quantidade excessiva de exames e procedimentos solicitados sem racionalidade científica, atuam sem limitar a interferência alheia. Mas que cultura é essa? Em nosso “saber” ocidental, o sintoma é considerado algo ruim e o alívio passa por uma relação de troca com a tecnologia. Estamos vivendo a época em que a lógica é a dos sólidos, em que só a panacéia dos equipamentos são armaduras suficientes para derrotar os “inimigos naturais”: as doenças. O que é pior: a relação de afeto passa pelo presentear.

  • Doutor, não agüento mais essas dores de cabeça!
  • Fique tranqüila que faremos uns exames: tomografia, ressonância e um ultra-som de crânio para observar seus fluxos cerebrais…
  • Está bem, doutor – respondeu a paciente, mais calma.

Foi quando um estagiário que acompanhava o médico, já fora do quarto, perguntou:

  • O doutor gostaria que eu a examinasse?
  • Não é necessário, os exames vão responder as nossas perguntas, afinal, está na cara que se trata de um “petit, um peripaque”, uma histeria, melhor dizendo.

O fracasso das relações humanas estereotipadas na atitude paradoxal é o fracasso da imaginação que recorre aos modelos e aos rótulos para diagnosticar, classificar, compartimentalizar, afastar e, por fim, enterrar. A confiança só existe nos sólidos representados pelos exames que, de antemão, sabidamente nada revelariam, pois tratava-se de uma doença dinâmica, não lesional e, nem por isso, menor. Foi quando, aos gritos, ouvi um auditor da empresa cliente sair do setor de contas médicas dizendo:

  • Estão maquiando as contas. Oitenta mil reais de antibióticos que nunca foram usados! Roubam e se deixam roubar? Não é possível isso!…

A confusão das contas apresentadas era proporcional à dissimulação com que víamos exagerar a gravidade dos casos para vender a complexidade dos tratamentos, tornando-os diferentes, únicos e, por isso, essenciais àqueles que não eram capazes de ver e de conhecer. Ao investigar a sombra de seus movimentos, observávamos a necessidade de prestígio que manifestavam e seu comportamento isolacionista revelava a estratégia para se destacar.

Quando gostamos de alguém, ficamos cheios de fantasias, idéias e ansiedades. Não temos certezas, pois estas só nos distanciam. Postura soberba não permite a aproximação e o conhecimento do outro e o que não se conhece se teme, odeia-se e se quer destruir para vencer. Não mais capazes de ver o mundo afetivamente, só competitivamente, essa postura perpetuada pelo sucesso financeiro que costumam ter transforma-os em vítimas contaminadas pelo desamor e pela frieza. Não encontram o conforto que só o carinho pode dar e odeiam ser tocados. Desamor como daqueles que deixaram para trás filhos, irmãos, pais e parentes, pela incapacidade de cuidar de seus familiares, pelo fatalismo de ver a vida como uma arena romana. Mantêm uma relação interessante com o destino, confortam-se ao atribuir ao mesmo um caráter determinista, pois dessa forma não se obrigam a questionamentos.

 

 

Poder: dissimulação; desejo: vencer; medicamento: Sépia.