O Bote, Lackesis trigonocephalus

A partir deste capítulo, resgataremos a nossa visão sobre saúde comunitária, mostrando como determinados conceitos podem atuar de forma tão eficaz como ocorreu nas epidemias infecciosas da Idade Média. Também abordaremos como essa forma de contágio, que se dá pessoa a pessoa, pode ser tão devastadora quanto a dengue, a febre amarela e outros males que açoitaram e ainda maltratam nossa gente. E, ainda, como a homeopatia com sua ação peculiar, somente em pessoas sensíveis, pode nos servir não só individualmente, mas também a ecossistemas de relação. Mostraremos que determinados grupos adoecem apenas por serem suscetíveis a determinadas formas de poder, cujos conceitos vividos por todos em determinado momento nos atingem de diferentes maneiras. É como se estivesse num bote descendo um rio, em que a elevação da cabeceira do barco corresponde à imersão da popa, sacudindo as pessoas que ali se encontram. Umas refletindo o desequilíbrio intrínseco da situação não suportam e caem, outras se arranham e algumas nunca mais andarão de bote novamente. Essas maneiras diferentes de reação, somadas, constituem arquétipos de medicamentos homeopáticos, perfis patológicos ou gênio epidêmico que, se analisados e tratados por nós, podem significar um avanço de saúde da população contaminada. Os capítulos seguintes vão expor casos de verossimilhança, aos quais tive a oportunidade de conhecimento, por meio do atendimento individual que fiz em meus pacientes.

Criadora e criatura – uma entrou muda e a outra mais parecia um radinho de pilha:

  • Vocês viram, vocês viram? O ganhador da loto mora aqui!

Aqui era uma cidadezinha de mais ou menos mil habitantes, onde o vento faz a curva, como se dizia antigamente. A menina não parava de falar, discurso inteligente, expressões e vocabulário de gente grande. A criadora entrou calada com olhar desconfiado, imaginando que ali já pudesse estar o abonado vencedor. A notícia espalhou-se rapidamente pela cidadezinha e não tardou a começarem as especulações:

  • Aposto como é o seu Tibúrcio da farmácia…
  • Que nada, esse já é endinheirado, Deus não iria presenteá-lo duas vezes.

A febre logo se espalhou e não tardou a aparecerem as brigas e os candidatos.

  • Agora é a minha vez, vou calar o bico de todo mundo, pague aí uma rodada dupla de “oldeight” pra moçada…

Não tardou a se aproximar o gerente da agência do Banco do Brasil, para conhecer o afortunado que ainda não havia se apresentado. Sem falar nas “quase donzelas” que já se esmeravam em lançar seu charme multicor:

  • Meu cabelo, eu quero bem louro…
  • Trate de pintar minhas unhas com as cores da moda. Ameixa, é claro…
  • Eu quero aquele vestido vermelho ali…
  • Bem decotado, hein! Não gosto de nada me pegando no pescoço!
  • Olha aqui, se eu te pegar jogando o charme para ele de novo, eu te mato!

O ciúme e a desconfiança imperavam, as amizades eram terminadas em poucas palavras, entrelaçar de olhares se misturava à orgia que se esculpia atrás das portas. Valia até feitiço para encontrar o maldito, aquele que tirara a paz daquela pacata cidade. Assim como as serpentes que desejam tecer os seus destinos, sofriam todos o poder de uma promessa não cumprida que, mesmo nunca prometida, mas imaginada, arrancava lentamente a saúde dessa gente.

Não demorou para que o pequeno posto de saúde batesse seu recorde de atendimento. Cheguei a ver uma mulher indo para a pequena sala de cirurgia com diagnóstico fechado de apendicite aguda, até que uma mancha de sangue, sem que fosse iniciado o corte, sutilmente por debaixo das cobertas, revelou a loucura e um grande desconforto na sala:

  • Ela está menstruada.

As dores de cabeça também não deixavam por menos, exigiam não menos que tomografias computadorizadas e, em alguns casos, ressonância magnética. O prefeito acionou a polícia para encontrar o dito cujo, responsável pelo déficit de caixa daquele mês, pois esses exames só eram realizados na cidade vizinha e a enfermidade era tamanha que os pacientes dependiam de ambulância UTI para transportá-los.

  • Minha filha não pára de vomitar, acho que é uma virose.
  • Amiga da Lite, disse o doutor sobre aquele caroço na boca do João! Essa fofoca está me sufocando…

E assim continuaram os transtornos, em sua maioria nada que tenha lesado o corpo, a não ser por aqueles já doentes que pioraram ainda mais seu estado de saúde ou por outros que ficaram com uma impressão tão forte do ocorrido, que decidiram abandonar todos os bens materiais e viver pregando o amor e a compaixão. Desses tenho algumas notícias, dez anos se passaram e uma cartomante famosa, forjada naquela mesma época, disse-me que já havia constatado o óbito de pelo menos quatro.

Assim, temos a doença de hoje, rica em sintomas, pobre em exames com diagnóstico explícito, de alta morbidade e desconforto, múltiplas causas, imperceptíveis ao próprio sujeito e que, sem intervenção, com o mesmo fim das demais.

A propósito, nunca se descobriu o nouveau riche, ou melhor, especula-se que aquele bilhete foi encontrado com um dos anões do orçamento, lá no Congresso Nacional.

 

 

Poder: traição; desejo: seduzir; medicamento: Lackesis.