O inferno é o outro, Lycopodium clavulatum

“O inferno é o outro…”

É muito comum ao analisar uma pessoa doente nos focarmos nos seus sofrimentos desenvolvendo uma compaixão que ajuda a terapêutica, mas, algumas vezes, não nos deixa perceber aquela pessoa, diante de uma situação de menor fragilidade.

Uma moça, sentada e chorando debaixo de uma árvore antiga e frondosa, buscava refrescar a sua alma na única sombra daquela vastidão arenosa. Foi quando entre um soluçar e outro, perguntou para si própria:

– Por quê sou gorda?
Uma voz respondeu:
– Porque você come demais!
Assustada, retrucou:

– Quem está falando? Socorro!

– Larga de ser boba mulher, que estou muito velho para brincar de pique-esconde.

– É você, senhor?! Me desculpe, mas nunca conversei com um carvalho antes…

– Também nunca sentou aí embaixo ninguém que eu não conseguisse cobrir totalmente com minha sombra.

– É, tá querendo dizer que eu sou gorda mesmo.

– Snif, snif! Não fale assim, pois não fica bem para uma árvore milenar como eu, começar a chorar.

– Árvore não chora.

– Quem disse isso a você, além de pesada é ignorante.

– Tá bom, desculpa.

– Oh, garota! Olhe pra cima. Está vendo este monte de frutas aqui dependuradas.

– Não… Espere, tem uma lá em cima, mas está muito alta.

– É isso aí, toda vez que alguém me conta uma história triste, cai uma fruta… Elas são as minhas lágrimas, sua idiota.

– Pode xingar, eu sei que sou isso mesmo, é igualzinho quando a Marta começa a brigar com as meninas.

– Lá vem este papo outra vez de “minha chefe é isso, minha chefe é aquilo…”

– Que minha chefe o quê, a Marta é minha funcionária.

– Funcionária? Então a demita, ora bolas…

– Demitir a amante do dono da empresa, se bobear ela é que me puxa o tapete. Pensava que era amiga dela, mas agora vejo que tenho é medo de sua arrogância.

– Hum! E o que tem haver a comilança com isso?

– Tem que para melhorar o clima entre as meninas, compro pão de queijo, deixo em cima da mesa para que todas possam comer e quando percebo, comi tudo sozinha…

– Ah, Ah, Ah!, mas é uma imbecil mesmo.

– Imbecil é você, seu carvalho de meia tigela, velho e solitário, tomara que um raio caia em sua cabeça.

Foi quando de repente viu-se uma luz cair do céu e espatifar o carvalho em mil pedaços. Ao observar os restos do carvalho, a moça percebeu que tinha se transformado em uma planta rala e rasteira, um Lycophodium. Sem que tivesse tempo para levantar a cabeça, a fruta que outrora se escondia no carvalho, caiu em suas mãos. Como num piscar de olhos a garota comeu a fruta que deliciosamente abateu sua fome e sua sede. Mas qual não foi sua surpresa, ao chegar na semente de formato esquisito, que parecia se mexer. Ficou então, ali posicionada, olhando-a embevecidamente e bem no centro da semente ali estava sorridentemente brincando de roda: ela, o carvalho e a Marta…

Inferno é um lugar tão escondido quanto a semente do carvalho, que guarda segredos de nós mesmos, contidos em nosso subconsciente. Procuramos nos acolher, como no carvalho, sob aquilo que nos parece comum e não nos ameaça. E somos vítimas da arma que carregamos conosco.Na verdade a garota, o carvalho, o Lycophodium e a Marta são a mesma pessoa, em momentos diferentes, alimentando-se da arrogância – o fruto do carvalho. Apesar de utilizar o poder de subjugar o outro, o desejo essencial dos sujeitos é a segurança, manifesta quando “ela”, num momento de fragilidade, senta-se à sombra dela mesma, o carvalho. E revela-se ao sofrer as chacotas da árvore maldita, que sequer a refrescava – só parecia frondosa – ameaçando-a com seus próprios medos, até vê-la se transformar naquilo que ela é: uma planta rala e rasteira.
Para fazermos um diagnóstico e ajudar estas pessoas corretamente, é necessário olharmos para o contexto em que elas estão inseridas, os relacionamentos que têm, de que sofrem e como reagem às farpas que, quotidianamente, são atiradas ao leu e as procuramos desatentamente por parecer um carvalho frondoso e refrescante.

Poder: arrogância, desejo: segurança pela autoridade, medicamento: Lycopodium